Na escola dos crescidos


A entrada no primeiro ciclo é um momento-chave para pais e filhos. A ansiedade instala-se, os medos acumulam-se e o nó na garganta parece não se desfazer. No entanto, este é o caminho natural da vida: desfrutem-no!

Dizer que a minha memória não é grande coisa é um claro eufemismo. A verdade é que, comparados comigo, os peixes têm memória de elefante, e é mais ou menos do conhecimento geral que, se aconteceu há mais de dois dias, o meu cérebro já fez “delete”. No entanto, e curiosamente, lembro-me do meu primeiro dia de aulas como se fosse hoje. A apresentação geral na Escola Nova, todos ao molho, no ginásio. Eu encostada aos espaldares, cinco anos de gente, o cabelo muito curto, a bata imaculadamente branca. Umas miúdas mais espevitadas tentavam que eu ficasse na equipa delas num jogo qualquer que tinham acabado de inventar, mas as minhas mãos atrás das costas não havia maneira de largarem o espaldar. Eu nunca fui uma criança tímida, mas, ainda assim, as novidades eram muitas, as pessoas eram muitas, e eu sentia-me ansiosa. Feliz, mas ansiosa.

Conhecer a professora acalmou-me os nervos. Era nova, bonita, com um ar bondoso. Não havia nela qualquer ar da bruxa má cheia de rugas e verrugas, a distribuir reguadas a torto e a direito, com que eu tinha sonhado na noite anterior. Maria do Céu. Não me lembro do apelido, mas não tenho dúvidas que a professora Maria do Céu não só contribuiu muito para amenizar o impacto do primeiro dia de aulas, como plantou em mim a semente do prazer de aprender coisas novas, de ler muito e de passar para o papel pensamentos e histórias, que me acompanhou ao longo do meu percurso académico e me trouxe onde estou hoje, ajudando, também, a fazer de mim quem sou. A importância que este primeiro professor tem na nossa vida continua a ser subvalorizada. Mas isso é matéria para outro artigo…

Não fiquei colocada na Escola Nova, onde se deu a apresentação geral, mas sim na Escola Velha. Mais pequena, só com duas salas, facilitou a adaptação, e o recreio, só com duas turmas, em vez das quatro ou cinco da Escola Nova, era um local, apesar de tudo, muito menos assustador. Com a resiliência própria da idade, rapidamente voltei a ser a criança extrovertida de sempre, e o nervoso miudinho do primeiro dia de aulas tornou-se apenas numa memória. Indelével, é certo, o que, para quem tem uma memória como a minha, diz muito da verdadeira importância do momento.

Mas na minha altura era tudo mais fácil. A sério. Não havia grandes tensões e grandes medos, especialmente da parte dos pais, e todos sabíamos mais ou menos o que era esperado de nós. A vida era fácil, convenhamos. Ia à escola, voltava, comia, fazia os trabalhos de casa, e passava o resto do dia a brincar na rua. Assim mesmo, sem grandes pressões. Hoje, noto claramente, as coisas já não são assim. A maioria das crianças andou no ensino pré-escolar, teve aulas de ginástica, de música, de inglês… Chegam ao primeiro ano, muitas já a saber ler coisas simples, a maioria a escrever pelo menos o seu nome na perfeição. Os pais projetam nos filhos as suas frustrações educacionais (“Ah, como eu gostava de saber tocar um instrumento! Vou colocar o meu filho numa escola de música, para ele aprender”; “Só tive oportunidade de fazer o ensino básico. Mas o meu filho há de ser doutor”…), e muitas vezes até a competitividade que sentem no trabalho. Instala-se a pressão e esquece-se de dar às crianças aquilo que elas mais precisam nesta altura: tempo. Tempo para se adaptarem a uma nova realidade, tempo para fazerem novos amigos, tempo para respeitar os seus ritmos individuais de aprendizagem e desenvolvimento. E isso aumenta também muito a pressão sobre o primeiro dia de aulas.

Com tranquilidade

Como quase tudo na vida, a reação da criança à entrada na escola vai depender das suas experiências anteriores. De acordo com o psicólogo Rui Guedes, um filho criado exclusivamente pelos pais – principalmente se eles forem superprotetores –, terá seguramente mais dificuldades de adaptação e socialização, e apresentará mais sentimentos de ansiedade. Por outro lado, as crianças que apresentem comportamentos de independência – porque tiveram oportunidade de conviver com outras pessoas e foram expostas a diferentes contextos –, terão mais facilidade em lidar com a entrada para a escola.

Portanto, como é óbvio, o papel dos pais é fundamental para facilitar ou dificultar o processo de adaptação da criança na escola. E de facto eles sentem, muitas vezes, uma ansiedade igual ou até maior à das crianças. A escola é muito grande, será que está bem guardada? Estarão seguros? Há turmas de outros anos, com miúdos bem maiores, será que haverá conflitos? Irão portar-se bem? Irão aprender bem? Conseguirão adaptar-se? Todas estas interrogações são normais, mas é importante que não deixem transparecer os seus receios para a criança, focando-se sempre nos aspetos positivos e criando expectativas otimistas. Os amigos novos, as brincadeiras no intervalo, as coisas novas que se vão aprender, estes são os pontos em que os pais devem concentrar as conversas com os filhos.

Aqui como no resto, o carinho nunca é demais, mas a superproteção é negativa. “Neste assunto da entrada para a escola, querem-se pais vigilantes e atentos, mas não superprotetores e ansiosos”, refere o psicólogo.

A Teresinha tinha tido tantas dificuldades de adaptação ao infantário que a mãe, Joana, estava aterrorizada com a entrada para o primeiro ciclo, no ano passado. “Acho que, na semana que antecedeu o início das aulas, devo ter dormido umas dez horas, no total. Na noite anterior não preguei olho. Ela passou do colégio privado para a escola pública, e nenhum dos amigos seguia com ela. Era tudo absolutamente novo. Não conseguia concentrar-me no trabalho, e acabei por tirar uns dias de férias, para a poder ir levar e buscar, e até – confesso com vergonha – para a ir ‘espiar’ ao recreio nos intervalos”, conta-nos. Já o psicólogo Rui Guedes até estremece quando lhe relatamos este caso. “É demasiado”, diz. “Não há nenhum problema em tirar um ou dois dias de folga do trabalho para os ir levar e buscar pessoalmente; se os pais puderem, é até positivo, nos primeiros dias. Mas uma mãe assim tão ansiosa, que chega ao ponto de ir à escola nos intervalos, não consegue esconder todo esse nervosismo dos filhos. Ora, por mais stressante que uma situação seja para a família, é ao adulto que cabe ‘segurar as pontas’ e manter a compostura. A criança já tem que lidar com a sua própria ansiedade, e o que precisa quando olha para os pais é de um sorriso calmo e tranquilizador, que lhe garanta que tudo vai correr bem”.

O Frederico, por seu lado, passou os seis primeiros anos de vida entregue ao cuidado dos avós, e nunca andou no infantário. A mãe estava apreensiva com a entrada para a escola, mas o pai, mais descontraído, e tendo ele próprio passado por uma situação semelhante na infância, conseguiu convencê-la de que o filho ia adorar a escola. “O meu marido fez-me ver que o Frederico adorava estar com outras crianças, que fazia amigos com facilidade no parque ou na praia, e que a escola, embora fosse todo um mundo novo para ele, teria muito mais de positivo do que de negativo. Os dois juntos incutimos esta ideia no nosso filho, durante o verão que antecedeu as aulas, reforçando sempre as coisas de que ele ia gostar da escola, e a verdade é que, quando chegou a hora, ele estava nervoso, claro, mas também excitado e feliz com a perspetiva de tudo o que aí vinha”, conta-nos a mãe Sandra.

Ainda assim, o psicólogo deixa o alerta de que “uma criança sociável não vai, necessariamente, adaptar-se imediatamente à escola”. É preciso na mesma perceber os seus medos, tentar amenizá-los e ficar atento aos desenvolvimentos. Na primeira semana é importante redobrar a comunicação e as atenções, de forma a detetar eventuais sinais de que a coisas não estão a correr bem. Rui Guedes aconselha a olhar para o comportamento do nosso filho, bem como ouvir o que ele diz. “De manhã, quando se preparam para ir para a escola, o seu filho despacha-se, numa atitude leve e descontraída, ou, pelo contrário, anda a ‘arrastar-se’ pela casa? Como reage quando lhe pergunta como foi o seu dia?”. Além disso, diz, na comunicação há que manter as perguntas simples: “É difícil para uma criança de seis anos responder se se sente feliz na escola. Conseguirá mais informação se fizer perguntas específicas, como ‘quem brincaste no intervalo?’, ‘com quem almoçaste?’, ‘há alguns meninos travessos na tua turma?’”

“A maioria das crianças adapta-se rapidamente a este novo ciclo”, conclui o psicólogo, “mas não se preocupe se demorar um pouco mais. Não tarda nada o seu filho vai estar à vontade, pronto para aprender e desfrutar da companhia dos colegas. Muitas crianças, inclusive, estão já bem adaptadas e entrosadas no final de setembro, mas ficam novamente perturbadas com a escola depois das férias de Natal. Isso é comum. Mas as crianças têm uma extraordinária capacidade de adaptação a novos ambientes, e vai ver que tudo se compõe”.

O papel da escola
A escola, claro, também desempenha um papel importante para que tudo corra bem. Atualmente, o início do ano para aqueles que dão entrada no primeiro ciclo já é encarado de uma forma menos formal e solene. É comum que, um dia antes do arranque oficial do novo ano letivo, os alunos do primeiro ciclo sejam convidados, juntamente com os pais, a conhecer os professores e a escola, num ambiente descontraído e relaxado. Há inclusive infantários que, no último ano, fazem com as crianças uma visita de estudo a uma escola do primeiro ciclo, proporcionando assim um primeiro contacto informal e lúdico.
Ajuda na adaptação se a criança tiver as competências práticas que a escola espera dela. Deve ter um discurso claro, capacidade de aceitar a autoridade, concentração e coordenação motora. Deve ainda saber sentar-se sossegada, esperar e ouvir.

Se os pais tiverem preocupações relativamente a alguma destas competências, convém que as expliquem em privado ao professor, de antemão.

Carla Soares, professora do primeiro ciclo há 25 anos, deixa a nota para os pais: “Qualquer que seja a reação dos seus filhos ao primeiro dia de escola, lembre-se que os professores já viram tudo isso antes. E estão lá para ajudar”. Pela sua parte, faz o que pode para amenizar o impacto dos primeiros dias. “Apercebi-me, ao longo dos anos, que as crianças que não conhecem ninguém na nova escola demoram, por norma, mais a adaptar-se do que as que já trazem amigos do infantário, ou vizinhos. Por isso, desde cedo que adotei o hábito de, no primeiro dia de aulas, atribuir a cada criança um ‘companheiro’; normalmente é o colega de carteira, e esses companheiros têm a responsabilidade de cuidar um do outro, seja na sala de aula, no recreio ou na cantina. As crianças acabaram de chegar à ‘escola dos crescidos’, e esta ‘responsabilidade’ que lhes dou costuma enchê-los de orgulho e de brios, e chega a ser comovente ver o desvelo com que se esforçam para que o companheiro se sinta bem. Isto dá-lhes um objetivo, permitindo-lhes tirar o foco do seu nervosismo, ao mesmo tempo que lhes mostra que os outros também estão assustados, e que, portanto, isso é normal”, conta.

Confie na escola, e se acha que alguma coisa não está bem, certifique-se de que a primeira pessoa que contacta é o professor. “Comece por transmitir o que o seu filho lhe disse”, aconselha o psicólogo. “Por exemplo, explique que ele começou por gostar muito da escola, mas agora anda nervoso e disse-lhe que alguém lhe deu um pontapé. Ou mencione que o seu filho lhe disse que não tem amigos. O professor saberá lidar com a maioria das situações”.

Asas para voar
Começar a escola primária é um tempo de ajuste, de afinação para as crianças, e elas precisam de saber que a sua base de segurança – a família – ainda está lá, de forma a sentirem-se seguras ao explorar este novo mundo.

Para além das mudanças na rotina, a entrada na escola causa outras alterações. “A criança precisa de se adequar a novas regras, tem que aprender a compartilhar, esperar, ceder, e tem uma oportunidade muito mais intensa de desenvolver o respeito pelo próximo. O ambiente em que agora se encontra é favorável ao desenvolvimento da autoconfiança, fomentada pela aprendizagem de uma série de novos comportamentos”, afirma Rui Guedes. Mas, continua, “as crianças ajustam-se à mudança de formas diferentes, pelo que os pais têm que respeitar o temperamento do seu filho. Quando os pais estão calmos mas entusiasmados, e tranquilizam os filhos sobre esta nova e excitante experiência, estão a ajudá-los a lidar com a situação.” Claro que esta não é uma situação fácil também para os pais, e ver o seu filho alinhado à porta para entrar para a sala de aula pela primeira vez pode rapidamente descambar num ataque de choro. Isto é normal, diz o psicólogo. “É o primeiro grande passo do seu filho rumo à independência. Será um mundo que ele conhece e você não. No entanto, quando o seu filho se adapta e gosta da escola, é um tributo à forma como o educaram, por isso tentem ver a coisa pelo lado positivo”.


Para os professores

Para os professores, todos os anos são anos de primeiro dia de escola. Quer seja um veterano ou um “rookie”, é certo que, tal como os alunos, terá sentimentos mistos de excitação e medo sobre este dia. Com calma, descontração e algum planeamento, vai ver que tudo corre bem. Aqui ficam algumas dicas para causar uma boa primeira impressão no primeiro dia:
Sorria. Aliás, se lhe apetecer, pode mesmo rir às gargalhadas. Os professores não precisam de ser sisudos para impor o respeito, e não há problema em deixar os alunos perceberem que é humano e tem emoções.
Vista-se a rigor. É um “opcional”, mas não há mal nenhum em parecer bonito e sentir-se bonito.
Prepare-se. São as pequenas coisas que fazem a diferença. Não espere até os alunos entrarem na sala para tomar algumas decisões que, tardando, podem dar origem ao caos. Coisas simples tornam-se complicadas quando se está a lidar com 20 crianças a entrar na sala de aula pela primeira vez. Como é que os vai sentar? Qual a melhor forma para lhe pedirem para ir à casa de banho? Como é que se alinharão na hora de sair da sala? Tente pensar nestas coisas antes do primeiro dia de aulas. Se é mesmo a sua primeira vez, peça ajuda a um professor já batido nestas andanças.
Defina as regras. Os seus alunos precisam de saber o que se espera deles, desde o primeiro dia. Quer prefira criar as normas, ou deixar os alunos sugeri-las, faça deste ponto parte integrante do primeiro dia.
Tenha um plano para o dia. O primeiro dia de escola é um dia longo – professores e alunos precisam de se adaptar. Pense no que vai fazer durante o dia. Planeie algumas atividades de apresentação, para que todos se fiquem a conhecer um pouco melhor, começando a construir uma atmosfera “familiar”. Dê oportunidade aos alunos para explorarem a sala de aula. Faça deste um dia para conhecer os seus alunos, e dê-lhes também a hipótese de o conhecerem a si.


Para os pais

Veja a escola como algo positivo para todos. Perceba que é necessário que a escola seja um local de felicidade para o seu filho (pelo menos pelos próximos 12 a 15 anos!). Perceba que você, como pai, terá um papel vital nesta felicidade e sucesso escolar. E saiba que não há mal em estar triste: está a abrir mão, a deixá-lo “voar” sozinho, e isso pode magoar.


- Comunicar
O seu filho está ansioso sobre o que esperar do primeiro dia de aulas, mesmo que não o demonstre. Uma forma de o ajudar é falar sobre os seus medos. Explique-lhe para onde vai, o que vai fazer, e tente descobrir o que o preocupa, perguntando como é que ele acha que a escola vai ser. Enfatize as coisas que sabe que ele vai gostar de fazer. Assegure-lhe que você, ou a pessoa que costuma tomar conta dele, vão estar lá no final do dia. Acima de tudo, não faça pouco caso dos receios do seu filho – coisas que parecem óbvias ou tontas para um adulto podem parecer obstáculos terríveis para uma criança de seis anos.

- Construir habilidades
Se as crianças têm uma boa ideia de como a escola vai ser, e se já se envolveram em atividades de aprendizagem em casa, é menos provável que achem a experiência stressante. Jogos, brincar de faz-de-conta e ler em casa podem ajudar o seu filho a entrar no estado de espírito certo e dar-lhe um impulso de confiança. Este tipo de atividades inclui: jogar jogos que envolvam jogar à vez ou falar à frente de um grupo; brincar com crianças da mesma idade para desenvolver competências sociais; ler livros sobre o começo da escola; usar os seus brinquedos favoritos para brincar de faz-de-conta que se vai para a escola; pintar e desenhar, o que envolve estar sentados por um determinado período de tempo.

- Envolver
Envolva a criança na escolha dos itens de que precisa para a escola, como a mochila, os lápis, canetas…; visitem a escola, mesmo que só possam ver por fora, e deem uma vista de olhos em redor; estabeleça uma rotina e falem sobre o que provavelmente estaria a acontecer na escola em diferentes alturas do dia.

- Facilitar a transição
Há que se preparar para uma nova rotina. Faça a criança ir para a cama à hora apropriada aos dias de escola, pelo menos uma semana antes das aulas começarem. E acorde-a também à hora da escola.
Se vive numa comunidade pequena, ou se por acaso no ginásio ou no supermercado falou com outra mãe cujo filho vai também entrar para a mesma escola, combine das crianças se conhecerem antes do primeiro dia de aulas. Se não, ensine-lhe formas de fazer novos amigos.

- Preparar
Para evitar correrias de última hora, que só aumentam a ansiedade, prepare as coisas na noite anterior. Escolham a roupa, organizem a mochila e adiantem a lancheira. Sirva um pequeno-almoço saudável. As crianças precisam de alimentos nutritivos para o cérebro!

Consultório

 "O meu filho, que fez recentemente quatro anos, vive intensamente esta altura do ano. Ainda acredita no Pai Natal e acha que é ele quem lhe traz as prendas. Ainda...

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