Todas as palavras a que temos direito

"Aos quatro anos, a minha filha mais velha já sabe interpretar o que lhe dizemos, quando lhe convém..." Crónica de Paulo Farinha.


A minha filha está a crescer, já sabe usar palavras caras e qualquer dia está a recorrer a metáforas para explicar ideias e sentimentos. Deve ser a isto que chamam inteligência emocional.

Aquilo saiu-me quando estávamos os dois no carro. A birra já lhe tinha passado a ela e a irritação já me tinha passado a mim. É garantido que se tentarmos parar um comboio em andamento só com o corpo nos carris, dificilmente o conseguimos – e vamos aleijar-nos. É assim com as birras também. Se tentamos apagar uma em combustão livre gritando mais alto, isso só vai fazer com que fique toda a gente mais perto da surdez. E nós vamos aleijar-nos no orgulho, porque vai ser inglório e não vai acabar quando queremos. Cada um tem os seus métodos, lá em casa tentamos resolver isso tirando palco e atenção à filha que faz a birra e dando-lhe espaço para acalmar (a menos que estejamos em público, claro, e aí fazemos a primeira coisa que achamos que vai resultar).

Hoje, depois da tempestade da birra, quando veio a bonança e eu saí de casa com ela, a frase saiu-me. “De cada vez que dás uma resposta torta ao pai porque estou a ralhar contigo por alguma razão, o meu coração fica um bocadinho mais pequeno.” Foi assim uma mistura de chantagem emocional barata com tiro a apontar à consciência emocional da cachopa, convencido que aquilo teria um impacto no sentimento de culpa e a deixaria a pensar. Só que... não. “Pai, o teu coração é do tamanho da tua mão fechada. O meu coração é do tamanho da minha mão fechada. O teu não pode ficar mais pequenino.” E pronto. Lá foi para as couves a ideia da metáfora como ferramenta para chegar onde quero. Ciências-1, Letras-0.

Aos quatro anos, a minha filha mais velha já sabe interpretar o que lhe dizemos, quando lhe convém, e utilizar essa informação da forma que lhe dá mais jeito. O que é notável, por um lado, mas deixa-me a pensar na rapidez com que isto está tudo a acontecer, por outro. Ainda ontem cuspia sopa e hoje já sabe que o corpo tem “mais de duzentos ossos”, que na nossa cabeça está o cérebro, “que é onde pensamos” e que o coração está “sempre, sempre, sempre a bater”. Mesmo quando estamos tristes.

O vocabulário dela é variado – eu tenho tendência a achá-lo excelente e a considerá-la a ela ultra-inteligente e ultra-bonita, mas posso ser suspeito –, em grande parte por não abebezarmos a linguagem em casa. Como qualquer criança, esta esponja de orelhas abertas absorve tudo à volta – nomeadamente expressões que usamos. Além disso, todos os dias lhe ensino uma palavra nova e ela até já pede, quando me esqueço. Já não se lembra que é a “primogénita” cá de casa, face aos três anos da irmã, também já não se lembra que para andar de bicicleta na cidade temos as “ciclovias” e sabe que às vezes se engana mas não se recorda e que isso é estar “equivocada”. No entanto, sabe que quando faz uma birra é porque está “zangada” ou “frustrada” ou “só doente”. E faz questão de reforçar, em dias como este, que é “uma criança” e por isso tem “comportamentos assim”.

A minha filha está a crescer, já sabe usar palavras caras e qualquer dia está a recorrer a metáforas para explicar ideias e sentimentos. E eu dou por mim a pensar que deve ser a isto que chamam inteligência emocional. E a pensar que o tempo corre mesmo depressa. E que é melhor aproveitá-lo bem. Com todas as palavras e abraços.


*Autor do blogue A Farmácia de Serviço (www.afarmaciadeservico.com) e editor executivo da Notícias Magazine, onde assina semanalmente as crónicas “Vida em Comum”.


Leia outras crónicas do jornalista Paulo Farinha:

O meu dia do pai e o dia do meu pai

Também podemos ficar aqui na creche?

Aleitamento materno: O pai pode falar?

Consultório

 "O meu filho, que fez recentemente quatro anos, vive intensamente esta altura do ano. Ainda acredita no Pai Natal e acha que é ele quem lhe traz as prendas. Ainda...

Leia Mais