Ao jantar, Skakespeare é para meninos
Escrito por Paulo Farinha* Quinta, 20 Julho 2017 | Visto - 4442
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"Fazer da refeição um momento de martírio e desgaste que levasse as miúdas a evitá-la nunca foi opção". Crónica de Paulo Farinha.
Talvez tenha passado ao lado de uma carreira nos palcos, tal a quantidade de personagens, barulhos, palhaçadas, brincadeiras ou faz de conta de que sou capaz de me lembrar para fazer as minhas filhas comer.
A Carolina já tem quatro anos e, desde os dois, não come sopa. Durante uns tempos ainda tentámos com diferentes ingredientes, consistências, recipientes ou ambiente em redor, mas acabámos por desistir. A Madalena tem dois anos e, como vê a irmã dispensada do ritual, começou a torcer o nariz à sopa também. Mais dia, menos dia, vamos deixar de insistir também – ela não sabe ler, não lhe digam isto, deixem-nos tentar mais algum tempo e arranjar maneira de misturar legumes de outra forma.
Fazer da refeição um momento de martírio e desgaste que levasse as miúdas a evitá-la nunca foi opção para mim e para a minha mulher. Elas nunca foram propriamente maus garfos mas, de tempos a tempos, temos de puxar mais pela cabeça ou recorrer a estratégias diferentes para que comam em condições. Há dias em que o pai consegue alguma coisa, outros em que só querem a mãe. Uns em que não há maneira de as convencer a comer o peixe, outros em que viram a cara à carne. Há dias em que é mais cansativo, outros em que temos menos pachorra.
A criatividade à mesa mudou bastante nestes anos. Hoje as minhas filhas já não vão lá com as canções do José Barata-Moura ou caretas, com “esta colher é para a avó, aquela é para a tia”. Nas últimas semanas temos feito a brincadeira de fechar os olhos e esperar pela “magia” que é ver a comida a desaparecer dos pratos delas, enquanto vão comendo supostamente às escondidas. Estou farto do jogo mas não lhes posso dizer. Quando deixa de funcionar, recorremos aos desenhos animados e vamos enfiando comida enquanto estão distraídas com a Princesa Sofia. Ou fazemos caras sorridentes, árvores ou um sol com carne picada no prato. E por aí fora, ideia atrás de ideia, o que surge no momento, o que a imaginação e a paciência permitirem.
Descobri, desde que sou pai, que talvez tenha passado ao lado de uma carreira nos palcos, tal a quantidade de personagens, barulhos, palhaçadas, brincadeiras ou faz de conta de que sou capaz de me lembrar para fazer as minhas filhas comer. Tudo serve para as convencer a engolir só mais aquele feijão, um bocadinho de carne, uma unha de maçã, um niquinho de brócolos, couve, alface, pepino ou esparregado. E quando a refeição acaba, naquele período pós-prandial de estômago cheio e alma reconfortada porque até conseguimos que elas comessem bem, dou por mim a achar que a necessidade de ser engenhoso à mesa também fez de mim um melhor pai. É que eu, à semelhança de tantos outros homens, achava que era o melhor pai do mundo até ao dia em que... fui pai. A partir daí, as certezas absolutas sobre a forma certa de educar um filho e reagir em situações exigentes dissiparam-se. “E agora, como é que eu descalço esta bota?” substituiu o “já sei como vou lidar com isto”. Até ser pai, tinha para mim que filho meu jamais faria fitas para comer. “Não quer comer, não come”, pensava eu. Sem alternativa, claro: ou era o que estava no prato ou era fome até à próxima refeição. E isto haveria de resultar as vezes que fossem precisas até os filhos do “melhor e mais bem resolvido pai do mundo” (ou seja, eu), aprendessem a lição. Mas isso nunca aconteceu. Na verdade, não cheguei sequer a tentar. Quem aprendeu uma lição fui eu: nunca fazer planos sobre os filhos antes de eles nascerem. Muito menos no que toca às refeições.*Autor do blogue A Farmácia de Serviço (www.afarmaciadeservico.com) e editor executivo da Notícias Magazine, onde assina semanalmente as crónicas “Vida em Comum”.
*Crónica da revista Pais&fihos de janeiro 2017.
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