Regressar à “seca”... ou talvez não
Escrito por Mário Cordeiro, pediatra Quarta, 13 Setembro 2017 | Visto - 5185
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"Convém admitir um período de transição para o “luto” das férias e para o retomar do ritmo letivo. Setembro é esse período". Por Mário Cordeiro.
~Que seca!” – foi assim que a Ana reagiu à nossa conversa. Estávamos na praia, à conversa com uns amigos, quando um deles comentou: “Está-se aqui tão bem e afinal daqui a meia-dúzia de dias já estamos a trabalhar e os pequenos começam as aulas”. A Ana, que parecia alheia ao mundo e por maioria de razão aos pais, reagiu de pronto: “Que seca!”. Entreolhámo-nos e os pais dela resolveram responder: “Mas já estás de férias há sei lá quantos meses... não estás farta? Ainda por cima este ano têm a benesse de mais uma semana! Olha, nós não…”. A Ana levantou-se, pegou na toalha e afastou-se, não sem antes ter dito: “Só falta dizerem que no vosso tempo ninguém tinha férias e adoravam as aulas...”. A cena continuou, com os meus amigos a dizerem que a filha estava cada vez mais malcriada e eu a tentar ignorar o assunto, também porque me parecia uma leitura demasiado rápida dizer que a Ana estava “muito malcriada” só por achar que começar aulas era “uma seca”.
Realmente, no “nosso tempo” tínhamos férias, se tínhamos. Quase quatro meses. E, tal como a Ana, protestávamos sempre que alguém nos dizia que éramos privilegiados mas, por outro lado, ao chegar setembro já o ar trazia um travo nostálgico de vontade de rever os colegas, as salas de aula, a escola e – pasme-se – até mesmo os “s´tores”.
O verão deixa saudades. A maioria dos jovens trabalha muito, durante o ano letivo, e o apanhar-se em férias corresponde a uma sensação de irrealidade. Nos primeiros dias, aliás, há muito a fazer: os pais apresentam o seu caderno reivindicativo: arrumar o quarto, deitar fora o lixo acumulado, escolher a roupa que já não serve e que continua a ocupar espaço, tratar de meia dúzia de coisas que ficaram “para quando tiver tempo”, e ainda há que dormir, ver televisão e jogar consola até mais tarde, programas com os amigos, e beliscarmo-nos de cinco em cinco minutos para termos a certeza de que não é um sonho. Finalmente chega o ansiado “repouso do guerreiro”, geralmente coincidente a ida para casa de familiares, atividades de interrupção letiva, campos de férias, casa de amigos, praia... Aí sim, são férias a sério. Reencontram-se grupos, reocupam-se espaços, medem-se as diferenças nas coisas e nas pessoas, “curte-se” o ar livre e a gestão flexível das horas.
Passado este período, os dias começam a ser mais pequenos e as folhas do calendário a passar mais rapidamente. Há a sensação de que das 200 coisas programadas “para as férias” teremos muita sorte se fizermos 20, e isso pode gerar nostalgia. Chega então setembro e o aproximar das aulas. “Que seca!” – diria a Ana e todas as Anas deste mundo.
Convém admitir um período de transição para o “luto” das férias e para o retomar do ritmo letivo. Setembro é esse período, com alguns deveres, reencontros, preparação psicológica (e física) e (recomendo) uma revisão (leitura, apenas) da matéria do ano anterior porque ajuda os neurónios a recuperar o que de importante se deu e que será muito útil para garantir a continuidade no novo ano.
A Ana, ao ver no regresso às aulas “uma autêntica seca” não se estaria a lembrar de todas as coisas que pode fazer e que, na maioria dos casos, são divertidas e têm implicações no presente e no futuro. E no que vai aprender e aperfeiçoar-se. E também que não há só direitos, mas também deveres.
Enquanto o sistema solar (e o escolar) forem o que são, há sempre a garantia de que para o ano há mais verão. O “bye-bye” verão é só, afinal, um “até junho”, Ana. Podes dormir descansada. A “seca” não te vai desidratar!