Depressão pós-parto

"Choro. Choro e só me apetece chorar. Eu sei que não devia, não tenho razões para isso. O meu bebé é saudável..."

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A Dona Culpa está em nossas casas, na nossa cabeça. Há sempre uma culpazinha desconhecida que espera por nós. E, se não houver uma evidente, inventamo-la. Gostamos de ser carne para canhão e de nos auto flagelarmos.


Choro. Choro e só me apetece chorar. Eu sei que não devia, não tenho razões para isso. O meu bebé é saudável, correu tudo bem, tenho um marido que me ajuda e a minha mãe está sempre presente. O obstetra disse que estava tudo a correr bem, o pediatra confirmou ainda ontem, na consulta, que o Zé está ótimo. Mas só me apetece chorar. E o pior é que, quando as lágrimas conseguem vencer-me e rolam pela minha cara, sinto um olhar de reprovação de todos. Ninguém diz nada, mas todos notam. E sei que me censuram, porque não é suposto chorar quando se tem um filho querido, e lindo, e desejado. “São lágrimas de felicidade, disse-me o meu pai, sempre generoso e meigo, olhando-me como se eu ainda fosse a sua filhota pré-adolescente de doze anos que acabou de cair da bicicleta e esfolou o joelho. Mas eu sei que não são. Sei que são lágrimas sentidas, de dor, de pena, de tristeza. Não sei porquê, estou tão contente com o nascimento do Zé, ele é querido, querido, querido, mas sinto-me de vez em quando tão triste que já arranjei uma maneira de disfarçar – digo que preciso de ir à casa de banho e transformo-a num vale de lágrimas. Não sei o que me está a acontecer, mas isto não é normal. Se calhar nunca deveria ter sido mãe...”

Devia. Devia, sim senhora. O que se passa consigo é normal. É mesmo muito normal. E só é pena que ninguém, entre médicos, enfermeiros, amigos, visitas, familiares e tanta gente, não lhe tenha dito que está neste momento a gerir dois processos, que afetiva e emocionalmente têm sinais contrários.
Um, o nascimento do seu bebé, provoca alegria – que pode ir até às lágrimas, claro, mas isso sabe a leitora distinguir bem, pelo modo como transmitiu o que sente –, uma alegria enorme. E essa alegria enorme fá-la sentir-se culpada pelos momentos enormes de uma tristeza infinda que sente. Pois é...
É que o segundo processo tem outro sinal, mais negativo. É o fim da gravidez. Não o da gestação, mas o da gravidez.
Deixe-me perguntar-lhe: quantas vezes fazia festas à sua barriga, nos dois últimos meses? Se calhar deveria perguntar quantas vezes NÃO fazia festas, porque o ato natural era fazer. Criou com a sua barriga uma enorme cumplicidade, que não passa apenas por saber que tinha o Zé lá dentro. Foi mais. Foi uma mudança corporal lenta, mas sustentada – e assim passaram as semanas.


De repente tudo acabou. De um momento para o outro. E mesmo sabendo que seria assim e que o resultado era o Zé, a gravidez acabou. Com a agravante de saber que não irá ficar grávida todos os anos. O fim de qualquer coisa que foi sentido como vital, uma realização, algo de bom e de transcendente, deixa uma terrível amargura e momentos de nostalgia. Há que fazer um luto. E qualquer luto, até se adquirir a necessária tranquilidade, tem momentos de uma infinita tristeza. E até de revolta.

É isso que se está a passar consigo: duas coisas de sinal oposto. O meu conselho é que siga os seus sentimentos. Ria quando lhe apetecer rir, chore quando lhe apetecer chorar. Sem mais, sem culpas, sabendo que o choro (salvo o de contentamento) não tem a ver com o Zé, mas com o vazio que o nascimento dele deixou dentro de si, e que será progressivamente ocupado com a presença dele fora de si. Paradoxal, não é?, mas nós somos mesmo assim....
A culpa existe. Existe mesmo. Talvez alimentada pela nossa moral, herdeira da tradição judaico-cristã. Mas existe. E, pior, esconde-se em qualquer gaveta, nas cabeças, debaixo das camas e dos móveis. E o pior é que damos sempre com ela, a qualquer esquina. Podemos não saber dos óculos que temos pendurados ao pescoço ou do pacote de leite que acabámos de abrir. Mas a culpa está sempre à mão de semear.
«A mãe da Rita chorava, chorava e chorava. As lágrimas caíam-lhe pela cara abaixo, muito infeliz, e nem o marido, terno e amoroso, conseguia calar esse rio que fluía dos olhos da mulher.
– Mas o que foi? – perguntava, insistente e impotente.
– Não sei. Só quero chorar – e, olhando para ele, rebentava em surtos lacrimosos. – Não sei o que é, mas sei que é minha culpa.
A Rita estava bem, gordinha, com os refegos bem salientes e viçosa. Só que, por volta das sete da tarde, rebentava ela, também, num pranto desatado, inconsolável, que nem a chupeta, o colo ou a caixinha de música conseguiam calar. Não queria comida, não queria nada. Parecia que só queria curtir a sua infelicidade e chorar, para exaspero de todos os que a rodeavam.
– És uma excelente mãe, não digas isso – o marido também não sabia o que dizer nem tinha mais trunfos na manga.
O pediatra pouco adiantara – umas mezinhas, a sonda de gases, isto e aquilo, mas nada. A Rita chorava pontualmente, e a mãe lamuriava-se, convencendo-se a pouco e pouco de que nunca deveria ter tido uma filha. Para mais, as avós, de ambos os lados, pareciam ter-se unido e descarregavam sobre a mãe da Rita: és muito nova. Sabes que isto de ter bebés não é fácil. Será que tens feito o que deves? Não tens comido coisas proibidas? Tens de descansar. Deves andar mais a pé. Pega-lhe assim. Pega-lhe assado...
Com o passar dos dias o leite diminuiu e a Rita passou a ter de beber suplemento. E, miraculosa e surpreendentemente, ao fim de duas semanas calou-se. De repente, como se nada fosse.
– Estás a ver – disse a mãe –, a culpa foi minha. Devia ter dado biberão desde o princípio. Coitadinha da minha filha...
O marido encolheu os ombros e não disse nada, não sabendo no que acreditar.»

Pois é. A Dona Culpa está em nossas casas, na nossa cabeça. Há sempre uma culpazinha desconhecida que espera por nós. E, se não houver uma evidente, inventamo-la. Gostamos de ser carne para canhão e de nos auto flagelarmos. A Inquisição não teria trabalho, atualmente – nós encarregávamo-nos de fazer o trabalho por ela!
A Rita chorava porque é normal os bebés, no final do primeiro mês, chorarem ao fim do dia. E a culpabilização da mãe, provavelmente, contribuiu para que o seu leite não saísse e tudo o mais que se seguiu. É normal, é humano, mas temos de ser mais vigilantes relativamente a essa senhora. Xô, Dona Culpa. Vá assustar outros. Saia da nossa casa! Nós somos os melhores pais que sabemos e podemos ser. A senhora desande e não nos agrave as nossas dúvidas e inquietações. Deixe-nos em paz!


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