Ossos partidos, álgebra e boi que dorme
Escrito por Gonçalo M. Tavares, ilustração de Rachel Caiano Quarta, 03 Julho 2013 | Visto - 7882
Tweetar |
Leia mais uma história de Gonçalo M. Tavares.
Muitas expressões que utilizamos nos dias comuns são frases antigas que os avós dos avós dos avós dos avós disseram, algures, lá atrás. E uma certa frase – de boca para ouvido, de ouvido para boca – lá vai avançando até chegar do avô do avô do avô ao… neto.
Há expressões que utilizamos que certamente vieram de um programa de televisão recente, mas há outras expressões que são utilizadas no nosso país, e noutros países, há muitos séculos. E devemos ter respeito pelos cabelos brancos, mesmo que estes sejam invisíveis nas palavras.
Por vezes, hoje, ao utilizarmos uma expressão popular, já o fazemos sem pensar no primeiro dos significados da frase, na sua origem. É por isso que é bem instrutivo, e também divertido, olhar para a história das palavras e das expressões antigas. Olhemos, então, para o “Dicionário de provérbios, locuções e ditos curiosos” de R. Magalhães Júnior e paremos em algumas expressões mais ou menos conhecidas.
História para boi dormir
É uma expressão muito utilizada em Portugal mas também no Brasil. “História para boi dormir” é uma história longa e grande e chata e aborrecida e que não termina e que enrola e que dá voltas e que não tem interesse nenhum e que não estimula e que não tem surpresas e em que nada acontece e, por isso, a meio da história longa e aborrecida e em que nada acontece há, afinal, um acontecimento, “um único um”: o ouvinte da história adormece. Ou seja: o único acontecimento da história acontece fora da história. Eis a proeza das histórias para boi dormir.
Diga-se que há inúmeras ocasiões em que as histórias para boi dormir são úteis. Escusamos de dar exemplos.
Nem é carne nem é peixe
Expressão que se usa para falar de pessoas ou acontecimentos neutros, que não tomam partido, que não viram nem para a direita nem para a esquerda. Pessoas a quem é indiferente dizer-se sim ou não.
R. Magalhães Júnior no seu Dicionário lembra que a expressão vem de uma velha adivinha portuguesa. É esta a adivinha:
“Não sou carne, nem sou peixe,
Ainda que nascido de peixe, ou carne.
Não sinto o mal que me faz a gente,
Porém os que de mim nascem,
O bem e o mal como a gente sentem.”
A resposta a esta adivinha?
O ovo.
Álgebra e medicina
Às vezes até as palavras, isoladamente, escondem uma enorme história secreta. Uma palavra tem biografia exactamente como uma pessoa: vem de um sítio e vai para outro; tem palavras-pai e palavras que são da família, próxima ou afastada. As palavras têm, enfim, vida própria. E às vezes essa vida passada é surpreendente.
A palavra álgebra, lembra Magalhães no seu Dicionário, “tem a sua origem numa expressão médica árabe.” A primeira parte da palavra é o conhecido artigo definido árabe al e a segunda parte, “jebr”, significa “a reunião do que estava quebrado”. Ou seja, a palavra que hoje utilizamos no mundo dos números foi usada, nas suas origens árabes, muitas vezes, como significando fixação de “fracturas ósseas”.
As equações que as crianças aprendem seriam, assim, segundo estes investigadores da origem das palavras, uma espécie de junção de números fracturados. É como se um número se tivesse partido aos bocadinhos e as equações da álgebra tentassem aquilo que a medicina tentava, usando a mesma palavra: juntar ossos fracturados, juntar elementos que estavam separados.
A álgebra actual é assim filha da medicina. E quem tenta resolver uma equação procede da mesma forma que aquele médico que tenta voltar a juntar numa unidade um osso fracturado.
Quem não souber resolver equações pode, pois, começar a argumentar que não tem habilidade para a medicina. É sempre uma desculpa – mas é uma desculpa, pelo menos, de uma pessoa bem informada.