A família da menina Gertrude
Escrito por Gonçalo M. Tavares, ilustração de Rachel Caiano Sábado, 27 Julho 2013 | Visto - 12803
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Aos 14 anos recebeu o terceiro coração de flores artificiais. A partir daí recebeu a mesma prenda, todos os aniversários
Aos 14 anos recebeu o terceiro coração de flores artificiais. A partir daí recebeu a mesma prenda, todos os aniversários
Os pais da menina Gertrude viviam na mesma casa de sempre, no campo. Cinquenta quilómetros afastados da cidade.
A mãe da menina Gertrude, com 60 anos, continuava a colher flores e a sonhar com um príncipe encantado. E a mãe da menina Gertrude tinha, como toda a família, um humor bem particular. Quando pensava no príncipe encantado ela dizia, para si própria: se tiver a minha idade e não puder vir de cavalo branco que, pelo menos, venha de bengala branca.
A mãe da menina Gertrude chamava-se Joselia Bê. E com sessenta anos ainda se punha de joelhos para cheirar melhor uma flor. Tinha muita energia.
- Ainda tens boas articulações para as flores – dizia-lhe, em tom de troça o marido, o senhor Boris, pai de Gertrude.
O senhor Boris tinha sido toda a sua vida, basicamente, um bruto. Agora, com 64 anos, era ainda bruto, mas de forma mais lenta; e também tinha um humor muito próprio. Ele costumava dizer:
- Não pensem que fui sempre um velho bruto.
E depois acrescentava:
- Com vinte anos era completamente diferente: era um jovem bruto.
A brutalidade do senhor Boris - pai da menina Gertrude e marido da senhora Joselia - poderia definir-se da seguinte forma: na vida não existem dúvidas, hipóteses ou hesitações. A única acção é avançar. E ele avançava.
O senhor Boris, o velho senhor Boris, não tinha, então, uma filosofia de vida, tinha, em vez disso, uma força de vida. E essa força ainda se manifestava, mesmo fisicamente. Com 64 anos, o senhor Boris ainda carregava, em dias de festa, a senhora Joselia Bê ao colo, repetindo o gesto que havia maravilhado a esposa no longínquo dia de casamento.
Os sonhos românticos (de infância)
A menina Gertrude cortou sozinha as unhas com sete anos e calçou-se sem a ajuda de ninguém no dia em que fez 8 anos.
Aos 10 anos recebeu um coração de flores artificiais.
Aos 12 anos recebeu o segundo coração de flores artificiais.
Aos 14 anos recebeu o terceiro coração de flores artificiais.
A partir desta idade recebeu esta mesma prenda, todos os aniversários. E ficava contente.
A menina Gertrude leu vários livros românticos em que existia um príncipe muito bonito.
Até muito tarde pensou que era sempre o mesmo príncipe, coitado, que andava a correr de um livro para outro.
Até aos 14 anos, a menina Gertrude encontrou no seu quintal seis pássaros feridos. Desses seis pássaros, cinco morreram, depois de devolvidos à natureza, e só um morreu nas suas mãos.
A menina Gertrude gostava de olhar o céu quando estava deitada com as costas na erva. Muitas vezes, nesses momentos, sonhava que um planeta inteiro ou uma estrela a vinham buscar, como se uma estrela fosse apenas um táxi com um pouco mais de volume do que o normal. Claro que, nos seus devaneios, o planeta e as estrelas a vinham buscar para a levarem para o palácio do príncipe que a esperava já há muito tempo.
Quando chovia, a menina Gertrude desenhava com o dedo na janela embaciada um coração com duas aurículas e dois ventrículos, como havia aprendido na escola. E em cada uma das quatro cavidades escrevia o nome de um herói da televisão. Precisava, portanto, de quatro nomes para ficar com o coração preenchido.