Ultrapassar a depressão com um bebé



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Espera-se que o nascimento de um filho desperte na mãe a felicidade plena. Mas nem sempre isso acontece. A depressão pós-natal afecta 10 a 15 por cento das mulheres e pode ter consequências para o bebé. É essencial pedir ajuda.


Isabel não tem dúvidas sobre o que a levou a ter uma depressão após o nascimento do primeiro filho, há seis anos: uma gravidez vivida sob o espectro da pré-eclampsia, um parto sofrido e demorado que terminou em cesariana, o desacompanhamento por parte dos profissionais de saúde nos dias seguintes, os dois quilos do filho, que a fizeram ouvir imensas sentenças colocando em dúvida a saúde do bebé. “Vivia cheia de medo que lhe acontecesse alguma coisa. Achava que não era boa mãe. Sentia que não tinha o amor incondicional que devia ter por ele. Não conseguia dar a volta aos comentários”, conta Isabel, relembrando a angústia que viveu nos primeiros meses de mãe.

O Manel nasceu em março, em maio Isabel assumiu que estava deprimida e procurou ajuda junto da obstetra. “A médica desvalorizou o assunto. Disse que não era nada.” Sem um diagnóstico, Isabel continuou a vida como pôde. Até que em novembro, umas dores de cabeça muito fortes levaram-na a consultar vários médicos. “Depois de muitos exames, fui encaminhada para um psiquiatra e foi-me diagnosticada uma depressão pós-natal. Senti-me aliviada, porque, finalmente, estava a perceber o que se passava comigo e sabia que podia curar-me.” O tratamento, com fármacos e psicoterapia, durou perto de dois anos. No final, Isabel já tinha vontade de ser mãe outra vez. Ano e meio depois, nasceu o António e a família espera mais um bebé.

É normal sentirem-se “alterações mais ou menos ligeiras do humor, no sentido da tristeza, da ansiedade ou ainda da irritabilidade, dois a cinco dias depois do parto”, explica o psiquiatra Ricardo Gusmão. A isto dá-se o nome de “baby-blues” e acontece com “mais de 80 por cento das mulheres”, sendo uma “resposta fisiológica universal à brusca mudança do ambiente interno hormonal”.

Mas uma depressão pós-natal (DPN) é mais do que uma tristeza momentânea. “É o resultado de uma falência do cérebro na capacidade de adaptação à mudança e de resposta aos estímulos. Compromete, por vezes, as competências maternas básicas pragmáticas (lavar, vestir, alimentar) mas sempre as competências maternas afetivas, relacionais e de vinculação”, continua o professor de psiquiatria e saúde mental na Faculdade de Ciências Médicas, da Universidade de Lisboa, lembrando que a doença pode surgir durante todo o primeiro ano de vida do bebé.

Muitas vezes, apesar de a mãe estar de rastos por dentro, o filho parece estar impecavelmente tratado, embora os efeitos negativos sejam inevitáveis. “Um dos sintomas de apresentação de DPN são vómitos incoercíveis [que não podem ser retidos] do bebé”, revela Ricardo Gusmão.

Mónica Fernandes, psicóloga na Maternidade Júlio Dinis, no Porto, lembra que “alguém pode substituir a mãe nos cuidados ao bebé, mas na parte afetiva a mãe é insubstituível. E uma mãe deprimida não está disponível do ponto de vista interior”.


Culpa e vergonha

Ainda na maternidade, com a segunda filha nos braços, Rosa esforçava-se por conter as lágrimas. “Só tinha vontade de chorar, mas tinha tanta vergonha que lutava contra isso. Sentia-me muito culpada e, quando estava com alguém, tentava disfarçar”, lembra Rosa, mãe da Camila, de cinco anos, e da Yasmin, de dois.

O disfarce não enganou o obstetra, que insistiu em querer ajudá-la e chegou mesmo a receitar-lhe medicação. Mas Rosa não tomou. “Sou muito teimosa. Achava que conseguia resolver tudo sozinha.” Em casa, contou com o apoio incondicional do marido, única pessoa a quem Rosa se permitiu confessar o que se passava. Foi o marido que gozou a maior parte da licença de maternidade. “Como eu trabalho por conta própria, já estava decidido que seria ele a ficar em casa. E calhou bem, porque eu tinha mais vontade de trabalhar do que de estar com a bebé. Era como se houvesse uma barreira entre mim e a minha filha. Apesar de a amar sentia uma tristeza profunda. Parecia que não nos entendíamos. O trabalho era uma boa desculpa para estar afastada.” Sentimentos que só há pouco tempo Rosa conseguiu confessar em voz alta. “Agora já consigo falar sobre isto abertamente, mas nessa altura era um constrangimento. Corria-me tudo tão bem e eu ali a chorar. Achava uma injustiça em relação às pessoas que tinham problemas graves.” Convenceu-se de que estava a atravessar uma depressão pós-parto e que haveria de passar. Oito meses depois, começou a sentir-se melhor. Agora, reconhece que com ajuda poderia ter sido mais fácil.

Mesmo quando parecem estar reunidas todas as condições para um pós-parto perfeito, não é raro surgir uma depressão. “A gravidez e o parto podem ter sido boas experiências. O bebé pode ser desejado e saudável, mas o primeiro mês é brutal para qualquer mãe. É, talvez, o assumir da maior responsabilidade que alguma vez vai ter na vida. A isto, juntam-se alterações hormonais e a recuperação física de um parto”, justifica Mónica Fernandes.

“Muita coisa muda com a maternidade e, no meio de muita eventual felicidade, espreitam sempre ameaças à identidade física e psicológica das mães”, sublinha, por sua vez, o psiquiatra Ricardo Gusmão.

Por isso, estar supostamente tudo a correr bem não é motivo para se sentir culpa ou vergonha de alguns sentimentos menos cor-de-rosa. “É importante estas mulheres sentirem-se autorizadas a pedir ajuda. Ainda existe uma culpabilização do ponto de vista sociocultural. E são habituais comentários como ‘se tens um bebé saudável não podes estar triste’”, diz Mónica Fernandes, que trabalha na área há 12 anos. “Mas, felizmente, noto que hoje em dia as mulheres têm mais facilidade em pedir ajuda. Podem falar abertamente com o obstetra, o enfermeiro, o médico de família ou o pediatra.”


Solidão e impotência

Para Elisabete, a primeira semana com um bebé foi uma surpresa total: “O Gabriel chorava muito e eu não percebia porquê. Comecei a pensar que estava a fazer alguma coisa mal. Além disso, diminuiu muito o peso e tive de dar-lhe suplemento, quando o que eu mais queria era dar de mamar”, revela agora, passados 17 meses. “Nunca me tinha sentido assim. Impotente”, admira-se. A angústia que sentia por dentro começou a ver-se por fora. Um dia, numa aula de recuperação pós-parto, a enfermeira, notando algo estranho naquela mãe, perguntou-lhe o que tinha comido ao pequeno-almoço. Foi rastilho suficiente. “Desatei a chorar. E confessei o que se passava: que não conseguia comer, não me conseguia arranjar, que só chorava”, descreve. Foi no local e na hora certa que o desespero veio ao de cima.

Imediatamente, outras mães e a enfermeira traçaram um plano de apoio. “Moro na margem sul, mas como ainda estou muito ligada a Lisboa, fiz o curso na Ajuda. Passei a atravessar a ponte todos os dias, durante a licença de maternidade, para estar com as outras mães. Combinávamos grandes passeios com os bebés. Estava sempre acompanhada. Isso fez-me voltar à vida.” Elisabete procurou ainda ajuda junto do médico de família, mas este disse-lhe que os antidepressivos eram incompatíveis com a amamentação (o que não é verdade). Para Elisabete dar mama era inegociável, por isso, o regresso ao equilíbrio fez-se mais devagar, mas com muita força de vontade.

A enfermeira Cristina Flores, do Centro de Saúde da Ajuda, acompanhou de perto a evolução e continua próxima da família, através dos encontros de pais que organiza duas vezes por mês. “Uma mulher que acabou de ter um filho não pode sentir-se desamparada. Não pode nunca sentir-se sozinha”, defende. É por isso que, assim que recebe uma mensagem no telemóvel anunciando um novo nascimento, responde com os respetivos parabéns e com a frase: “Estou disponível 24 horas por dia”. Nas aulas de preparação pré e pós-parto, que são realizadas em simultâneo para promover a partilha de experiências, Cristina Flores desenvolve uma autêntica rede de mães. “Costumo dizer que criam ligações de barriga. Muitas ficam amigas para a vida. Amizades que dão autoconfiança e reforçam a autoestima.”.


Sobre a depressão pós-natal (DPN)

*A depressão é uma doença do cérebro, caracterizada por um conjunto de sinais e sintomas, com uma determinada intensidade, duração e impacto. Humor depressivo, falta de prazer, falta de energia ou agitação, pessimismo, ideias de morte, dificuldades de concentração, alterações de peso e apetite, alterações do sono e da função sexual e dores de todo o tipo podem ser alguns dos sintomas.


*Mais de metade das mulheres ultrapassa a depressão pós-natal durante o primeiro ano de vida do bebé, embora fiquem vulnerabilizadas para a ocorrência de mais episódios depressivos no futuro.


*Existem antidepressivos compatíveis com a amamentação e também com a gravidez. Só devem ser tomados por indicação e com o seguimento de um médico.


*O risco de sofrer depressão clínica no primeiro ano pós-natal é maior que o dobro em relação a mulheres não mães em igual período.


Fonte: Ricardo Gusmão, professor de psiquiatria e saúde mental na Faculdade de Ciências Médicas

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