A (extraordinária) importância do pai
Sexta, 22 Setembro 2017 | Visto - 14605
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Pai e mãe têm funções diferentes? Um pode “substituir” o outro? E se não há pai? Numa altura em que os papéis sociais do pai e mãe mudam e o conceito de família se altera radicalmente, fomos perceber qual é, hoje, o papel do pai.
O pai já foi, em tempos, a figura mais ou menos autoritária e distante que garantia o sustento da casa enquanto a mãe se ocupava dos filhos. Mas isto foi – felizmente – há demasiado tempo para os mais jovens poderem recordar. Hoje há tanta diversidade no papel de pai e mãe como há no de homem e mulher, e posturas tradicionais convivem com outras mais contemporâneas.
“A diferença entre o papel do pai e da mãe tem estado diferenciado como consequência da desigualdade dos sexos na sociedade”, defende o psicanalista Nuno Cristiano de Sousa. “Em gerações antecessoras era habitual uma distinção clivada (…); o pai impunha regras e a mãe dava os afetos. Não porque fossem os únicos papéis possíveis de ser cumpridos por cada um dos sexos, mas porque era o procedimento comum.” O psicanalista recorda que, em termos práticos, o único cuidado que o pai não pode dar e que a mãe pode, é a amamentação e que, no que toca aos aspetos afetivos da relação com as crianças, não há qualquer tipo de constrangimentos ditados por se ser homem ou mulher. “A grande diferença será em termos da personalidade de cada um, não pela diferença de género.”
O pai não é mais importante hoje do que foi noutros tempos, apenas se começou a perceber a sua verdadeira importância à medida que foi assumindo uma postura mais ativa na relação com os filhos. Depois de tanto tempo remetido para segundo plano, sobretudo no plano dos afetos e da relação, nos últimos anos têm-se multiplicado os estudos sobre os benefícios da sua presença e envolvimento. “A progressiva valorização do papel da mulher na sociedade implicou uma responsabilização do homem no cuidado das crianças. Hoje, é socialmente expectável que o homem também participe nos cuidados dos filhos, desde o nascimento. Este novo enquadramento permitiu perceber-se as vantagens desta presença, seja por parte dos filhos, seja por parte da mãe”, defende Nuno Cristiano de Sousa.
O que se ganha
As vantagens desta presença foram compiladas e estudadas pelos investigadores Sarah Allen e Kerry Daly, da FIRA (Father Involvement Research Alliance), um projeto da Universidade de Guelph, no Canadá, que em 2002 elaborou um documento que sintetizava todos os benefícios comprovados pela literatura científica do envolvimento do pai no desenvolvimento das crianças. Em 2007, fizeram uma atualização do documento original, que incluiu a análise de mais 150 novos estudos. Um apanhado de “vantagens” que se pode considerar impressionante. Ficam algumas delas:
- Aos seis meses os bebés são cognitivamente mais competentes;
- Com um ano continuam a demonstrar níveis mais altos de funcionamento cognitivo;
- Aos dois anos são melhores a resolver problemas;
- Aos três têm quocientes de inteligência mais elevados e, uma vez que a conversa dos pais se pauta por mais ‘Porquês?’, são crianças comunicativamente mais ativas, que falam mais e usam vocabulário mais diverso;
- Em idade escolar, durante o primeiro ciclo, têm melhores notas nos testes, melhores capacidades verbais, melhores capacidades de leitura e melhor desempenho sócio-emocional. E, parece mentira, mas têm também menos probabilidade de sofrer acidentes e ser obesos;
- Já na adolescência têm atitudes mais positivas em relação à escola, participam mais em atividades extracurriculares e têm menos probabilidade de chumbar, ter pouca assiduidade, ser suspensos e ter comportamentos de risco associados à delinquência juvenil;
- São ainda jovens adultos e adultos mais resilientes e tolerantes ao stress, mais autoconfiantes, com melhores relações sociais, com menos medos e sentimentos de culpa.
E, se alguém tinha dúvidas acerca da importância do papel do pai, finda esta lista – que não é exaustiva – é de esperar que elas se tenham dissipado. E mais: tudo isto continua a ser verdade em situações de separação ou divórcio, desde que o pai seja presente e envolvido. Viver sempre debaixo do mesmo teto não é condição essencial a nenhum destes benefícios.
Longe, mas sempre presente
O envolvimento do pai não tem de ser necessariamente suportado por uma estrutura familiar tradicional. Numa altura que há menos casamentos, mais divórcios e mais famílias reconstituídas, o tipo de relação entre os pais, outrora o casal, assume formas mais diversas e nem sempre há algo mais em comum do que um filho. Os dados da Pordata mostram que no ano de 1980, apenas 9,2 por cento das crianças nasciam fora do casamento e, em 2015, mais de metade (50,7 por cento) nascem sem que os pais estejam casados e, destes, em 16,3 por cento dos casos não há coabitação dos progenitores.
Mas a relação do casal é uma coisa, a dos pais com os filhos outra. Patrícia – que prefere não revelar o apelido – não planeou ser mãe, o pai do seu filho Bernardo também não planeava ser pai e, no entanto, a gravidez, fruto de uma relação ocasional, transformou-se numa maternidade e paternidade que têm feito as delícias dos dois nos últimos seis anos. Nunca viveram debaixo do mesmo teto, mas estão igualmente envolvidos nos cuidados ao filho. “O Bernardo nunca teve os pais a viverem juntos, mas tem uma proximidade com o pai que, certamente, algumas crianças que têm os dois pais debaixo do mesmo teto não têm”, opina Patrícia. “Passa, desde sempre, o mesmo tempo com o pai que passa comigo e não há nada que eu faça que o pai não faça também. O Bernardo sabe que pode contar com os dois de igual forma.”
Mas por vezes não há mesmo pai. São disso exemplo situações de abandono das responsabilidades parentais por parte do pai biológico, morte precoce ou casos (ainda raros, mas cada vez mais frequentes) de mulheres que se decidem por um projeto de parentalidade individual, recorrendo, por exemplo, a inseminação artificial. Mas o facto de não haver pai não quer dizer que não exista na vida da criança uma figura paterna.
“As crianças, de forma natural, tendem a eleger um homem próximo do seu núcleo familiar como figura substituta, o avô ou o tio, por exemplo”, conta Nuno Cristiano de Sousa.
Quando essa figura não existe podem daí vir consequências negativas (ver caixa) mas, diz o psicanalista, apesar de ser frequente alguma tristeza no facto de crescer sem pai ou figura paterna, isso só é traumático “se essa ausência for acompanhada por outros aspetos desorganizados na vida da criança, por exemplo, uma família destruturada em que ninguém transmite segurança à criança, um pai intermitente que aparece e desaparece, ou quando o pai abandona o lar e a mãe não clarifica que o pai não saiu de casa por culpa da criança”. Ou seja, “há pais e mães solteiros que criam filhos saudáveis porque estabelecem com eles relações saudáveis”, diz.
Pai versus mãe?
Aquilo que pai e mãe dão e a forma como se relacionam com a criança depende do feitio de cada um e da própria dinâmica do casal – em que cada um dos membros tende sempre a ter uma postura compensatória face ao outro. Mas, apesar de os papéis estarem em mudança, há uma longa tradição de cuidados da mãe que ainda não foi quebrada e que origina formas diferentes de cuidar.
“Sem dúvida que pai e mãe dão coisas diferentes, proporcionam crescimentos diferentes, aprendizagens cognitivas, emocionais e sociais completamente distintas, mas valiosamente complementares”, defende a psicóloga Vera Lisa Barroso, da Oficina de Psicologia.
“As mães, herdeiras de uma longa tradição de cuidar, (…) são mais protetoras, sensíveis, organizadas, atentas, cuidadosas. Os pais são mais práticos, descontraídos, ousados e criativos nas brincadeiras, pelo que conseguem muitas vezes viver uma relação com os filhos com menos medos e preocupações do que as mães.”
O psiquiatra António Coimbra de Matos tem, a propósito destas diferenças – que ainda se podem encontrar –, uma frase interessante: “Quando a criança cai e esfola o joelho, a mãe dá um beijinho e o pai um chuto no rabo”. E a criança precisa de ambos, remata Vera Lisa Barroso. “O beijinho da mãe valida, empatiza e cura, o chuto no rabo do pai normaliza, encoraja e desafia a viver a vida sem medo de voltar a cair.”
E quando não há figura paterna?
São raras as situações em que não existe nenhum tipo de figura paterna. Nos casos em que não existe quem cumpra essa função, as consequências podem ser diferentes para os rapazes e para as raparigas, defende Nuno Cristiano de Sousa.
“No caso dos rapazes a figura masculina é um modelo de identificação, há uma tendência para copiar os maneirismos, as atividades por que se interessam, a forma como se comportam com os outros homens e com as outras mulheres”. Na ausência deste modelo abre-se espaço para as inseguranças, “podendo levar a que os rapazes se sintam ‘menos homens’ que os pares e na relação afetiva com as mulheres.” O psicanalista considera, no entanto, que essa falha pode ser compensada na adolescência, através da identificação com colegas ou outras figuras masculinas que admirem, embora sejam sempre exemplos menos eficazes do que um pai presente que protege, ensina e estimula.
Já no caso das raparigas, a ausência de amor de uma figura paterna pode fazer com que desenvolvam insegurança na relação com o sexo oposto. “A natureza do amor paterno e conjugal é diferente, mas o pai é o primeiro homem a validar e valorizar a menina enquanto mulher.”
Seja a criança rapaz ou rapariga, e dado que os motivos da ausência paterna podem ter origens muito distintas, Nuno Cristiano de Sousa frisa que o mais importante é sempre “a família validar as competências da criança, elogiando-a pelas suas características, ajudando-a a resolver as suas questões e evitando a criação de ‘mitos’ que se podem revelar traumáticos.”
Pais cada vez mais presentes após nascimento
A legislação tem vindo a evoluir no sentido de proporcionar uma presença mais igualitária do pai no período a seguir ao nascimento: dos cinco dias úteis a que tinha direito até 2009, passou-se para a atual lei de proteção na parentalidade que estipula 15 dias de licença obrigatória e a possibilidade de tirar a licença parental inicial de 120 ou 150 dias, sendo que 30 destes podem ser gozados em simultâneo pelo pai e pela mãe. As medidas legislativas parecem estar a dar frutos – ou a ser aproveitadas pelos pais – já que, de acordo com os dados de 2016 da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE), mais de 40 por cento dos pais portugueses tiram licença, sendo o país um exemplo, a par dos países nórdicos. O ano passado, do total de cerca de 87 mil bebés, houve ainda, entre janeiro e novembro, quase 22 mil homens a partilhar a licença de parentalidade inicial com as mulheres, ficando em média 27 dias sozinhos a cuidar do bebé.