Amigos para sempre
Quinta, 14 Setembro 2017 | Visto - 2671
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Com os animais de estimação, as crianças aprendem que o amor pode ser tão simples como uma lambidela lambuzada de um cão que está feliz por nos ver ou o ronronar de um gato que se enroscou no nosso colo.
Se é verdade que, normalmente, os pais trazem um animal para a família como companheiro de brincadeiras das crianças, e para lhes ensinar o sentido de responsabilidade, também o é que elas acabam por descobrir coisas muito mais relevantes: como criar empatia com os outros, como compreender sentimentos manifestados de forma subtil e como olhar para o mundo de uma perspetiva diferente.
O psicólogo Rui Guedes não tem dúvidas de que, “do ponto de vista emocional, os animais podem ensinar muitas coisas às crianças”. O que não significa, claro, que as crianças que crescem sem estes contactos fiquem de alguma forma em desvantagem no seu desenvolvimento. “Os animais de estimação permitem-nos viver experiências diferentes e assimilar um sem-número de conceitos de forma maravilhosa. Eles são ótimos, mas são um opcional. Não faz qualquer sentido adotar um animal com o único propósito de ajudar no desenvolvimento das crianças. Agora se o animal já existe, ou se há uma vontade da família, como um todo, em acolher um novo membro, excelente! Nunca conheci uma pessoa que não me relatasse com todo o carinho as histórias de infância com os seus grandes amigos de quatro patas”, refere Rui Guedes.
E a verdade é mesmo esta: se existem animais de estimação na família, eles serão os primeiros grandes amigos das crianças, e essa amizade permanecerá nos seus corações para sempre. O adulto que nunca verteu uma lágrima ao ver num jardim um cão que era igual àquele que teve em criança, que atire a primeira pedra. Amor. Não é nada menos que isso que as crianças sentem pelos seus amiguinhos peludos, e eles amam-nas de volta, de uma forma incondicional, sem pedir nada em troca. E apesar da criança ter já a experiência deste tipo de amor, com os pais, os tios ou os avós, o amor de um animal de estimação acrescenta uma dose extra de confiança, porque é também um amor sem julgamentos e sem expectativas, como refere o psicólogo: “As crianças passam pela vida em constante avaliação. São avaliadas pelo comportamento, pelo desempenho escolar, pelas capacidades atléticas… Os pais, os amigos, os professores, todos têm expectativas para a criança cumprir. Já os animais são estranhos aos conceitos de sucesso ou fracasso, e ficam genuinamente felizes apenas porque a criança está ali com eles. A aceitação é total, sem julgamentos ou notas, o que aumenta a autoestima da criança”.
Lições de vida
Falamos principalmente de cães e gatos, pois permitem uma maior interação e, logo, uma maior envolvimento emocional, mas vários dos ensinamentos que as crianças tiram dos animais podem também ser dados por coelhos, hamsters, pássaros, e até tartarugas e peixes. Por exemplo, a capacidade de cuidar: se devidamente supervisionadas pelos adultos, as crianças aprendem a cuidar de outro ser vivo, e a ter prazer em manter o animal saudável e feliz. Os peixes são um excelente primeiro animal para esta função. No entanto, outros animais que necessitam de mais atenção, como um cão ou gato, podem apresentar uma oportunidade ideal de união para pais e filhos, enquanto cuidam dele juntos. Mostrar às crianças o que significa ser responsável pela sobrevivência de outra criatura, resulta em lições de vida importantes, tais como disciplina, paciência, gentileza e atenção, o que as coloca no caminho certo da maturidade.
Mas juntar o Pintas, a Mimi ou o Sr. Bigodes à família traz muitas outras vantagens. Em termos de comunicação, as crianças aprendem a perceber os sinais subtis que os seus animais de estimação emitem para indicar o que sentem, o que, aplicado à interação humana, as torna mais habituadas a descortinar a linguagem corporal: com os animais, as crianças aprendem a comunicação não-verbal, e isso torna-as mais sensíveis aos outros.
A sua capacidade de resiliência face à mudança também aumenta, uma vez que ajuda ter um animal de estimação com quem falar e a quem confessar as inseguranças e os medos. “A solidão é perigosa para as crianças”, refere o psicólogo Rui Guedes, e, no caso de filhos únicos, ter um companheiro animal faz as crianças sentirem-se parte de algo especial, algo “extra-pais”.
Passear o cão, alimentar o porquinho-da-índia ou falar com o papagaio podem também servir, nas crianças em idade escolar, como momentos de quebra de estudo divertidos, e um substituto para programas de televisão e jogos de vídeo.
Os animais de estimação ajudam ainda na função de preparar as crianças para cenários da vida “real”. Por exemplo, facilitam a transição de, de repente, ter que dividir a atenção dos pais com um novo irmão ou irmã. Podem também ajudar as crianças a aprender a lidar com problemas médicos, pois ficam expostas a rotinas veterinárias de check-up e aos tratamentos para várias dores, indisposições ou doenças. E até com a morte, uma vez que, para muitas, a perda de um animal de estimação é a primeira experiência de uma morte na família.
Memórias que ficam
A Joana fala-nos da influência dos gatos e do cão da família nos seus três filhos, e recorda uma das lições mais difíceis da vida: lidar com a perda de um ente querido. “Os nossos dois mais velhos tinham seis e quatro anos quando a nossa primeira gata morreu. Eles construíram-lhe um caixão, decoraram-no, colocaram lá dentro mensagens sobre como ela tinha sido a melhor gata do mundo, puseram os seus brinquedos favoritos à volta dela e escolheram o local no quintal onde queriam enterrá-la. E eu lembro-me de pensar, enquanto os via a chorar ao cavarem eles próprios a sua sepultura, que estava a ter um vislumbre dos homens em que eles se tornariam”.
Já o Pedro, hoje com 28 anos, afirma nunca ter esquecido o cão e o gato que com ele dividiram a infância. “ O cão era o nosso – meu e das minhas irmãs – companheiro de brincadeiras frequente, e o meu refúgio pessoal quando me sentia triste com alguma coisa. O gato era mais reservado, mas aprendi com ele uma lição valiosa sobre respeitar o espaço do outro: espetou-me uma garra no lábio, uma vez que eu o queria abraçar mas ele não estava para aí virado”.
A Manuela conta-nos como adora ver o filho adolescente baixar-se para beijar a cabeça do cão da família. “Acho que é um bom augúrio para a sua capacidade de expressar carinho no futuro”.
As memórias da Teresa são mais em forma de ressentimento: “Há quase 20 anos, o meu alergologista, o Dr. Palma, mandou os meus pais livrarem-se dos nossos dois amados gatos. As minhas alergias não melhoraram, e ainda hoje odeio o Dr. Palma”.
O último testemunho chega-nos do Martim, de 9 anos, que nos conta, um pouco envergonhado e a olhar para o chão, que mesmo que alguma coisa tenha corrido mal na escola, tudo fica bem quando entra a porta de casa e o seu cão lhe dá as boas-vindas, muitas vezes atirando-o ao chão e lambuzando-lhe a cara toda. Depois veem os dois um pouco de televisão, antes do lanche, o Martim sentado no sofá e o Kiko deitado ao lado, com a cabeça pousada nas suas pernas. “Vale bem a pena os pelos todos que a mãe depois me obriga a aspirar do sofá”, diz com um brilho nos olhos.
Posto isto, convém referir que não há nenhuma lei universal que diga que todas as crianças têm dentro delas o que é preciso para dedicar a sua atenção a um animal de estimação, ou que todos os animais de estimação vão instantaneamente amar as crianças. Assim, a primeira regra para incluir um animal na família é que os pais o desejem. Não só a relação entre o animal e a criança tem de ser mediada, como não é razoável esperar que ela vá fielmente alimentar, dar banho, escovar e passear o animal, bem como limpar o que ele suja em casa.
Os cães e os gatos são algumas das criaturas mais amorosas, devotadas, fascinantes, engraçadas e atenciosas do mundo. Mas também exigem uma grande quantidade de tempo e atenção. É uma responsabilidade – dos adultos, nunca é demais referir - a tempo inteiro e a longo prazo e, por vezes, é também uma fonte de stresse. É um compromisso de vida, que tem que ser assumido pelas razões certas, e não porque os estudos dizem que faz bem às crianças. Resumindo: as pessoas que não amam os animais não devem ter um animal de estimação, qualquer que seja a razão.
Não são brinquedos
A veterinária Mónica Roriz conta-nos que fica fora de si quando lê algum texto ou anúncio que se refere a determinada raça como “amiga das crianças”. E desmistifica o assunto: “Não existe o gene ‘simpatia em relação às crianças’, pelo que há que ter sempre os devidos cuidados e fazer o devido acompanhamento quando animais e crianças convivem no mesmo espaço. O truque é que haja sempre respeito mútuo, e esse é o principal papel dos pais, o de coordenar a interação entre os dois e ensinar a criança a respeitar o animal”. Os animais não são brinquedos, e é importante que a criança perceba isso.
Quanto a doenças, Mónica tranquiliza os pais: “Atualmente, não há possível contaminação de doenças infetocontagiosas dos cães e gatos para as pessoas. O ponto que exige especial cuidado é o da desparasitação, tanto externa (pulgas, carraças) como interna (lombrigas), pois aqui sim, pode haver contaminação mútua. No entanto, cumprindo os planos de visita recomendados pelo veterinário e os cuidados de higiene normais, tudo estará bem”.
E as alergias
A ligação entre animais e alergias nas crianças é particularmente complexa. Se os pais são alérgicos – e, portanto, os filhos são também mais propensos –, ou se a criança foi diagnosticada, há que falar abertamente com um médico e, em conjunto, decidir a melhor solução. Em última instância, são os pais que têm a palavra final.
Alguns estudos sugerem que a exposição precoce aos animais pode ter um efeito protetor. Analisadas crianças sem histórico familiar de alergias, percebeu-se que as expostas a cães no período perinatal podem ser menos propensas a desenvolver alergias.
Investigadores finlandeses publicaram também um estudo no jornal “Pediatrics” onde referem que ter cães ou gatos em casa quando se nasce pode proteger as crianças de doenças respiratórias durante o primeiro ano de vida. Eles seguiram 397 crianças desde a gravidez das mães até ao ano de idade, e descobriram que as que foram expostas a cães em casa tiveram menos doenças respiratórias ou sintomas. Os gatos ofereciam benefícios semelhantes, mas em menor grau.
Estudos e hipóteses à parte, nos casos de crianças com histórico de alergias, o pediatra deve sempre ser consultado a respeito dos animais de estimação que já existam no lar ou que se pretendam adotar.