Solos de amor
Quarta, 29 Abril 2009 | Visto - 13529
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A casa de Maria Manuela Martins é o espelho do que se costuma chamar uma casa cheia. Aos 44 anos, a enfermeira luta diariamente para tentar conciliar uma profissão exigente com a educação dos seus cinco filhos. «A mais velha tem 24 anos e os mais novos – um casal de gémeos – oito», diz enquanto recorda o percurso da sua vida. «Casei com 19 anos e tive uma filha, mas a relação acabou por durar apenas um ano e meio.» O envolvimento do marido com o universo da toxicodependência destruiu por completo a relação. «Tive de me separar, aquele não era modo de vida para ninguém. Voltei para casa dos meus pais e a minha filha ficou comigo.»
Passados quatro anos, e através de amigos em comum, Maria Manuela conheceu aquele que viria a ser o pai dos seus outros quatro filhos. «A relação era boa e nunca sentimos necessidade de casar.» Viveram durante 15 anos em união de facto, até que o companheiro abriu um restaurante/bar e tudo mudou. «O último ano foi para esquecer. Ele abriu um negócio por conta própria que o obrigava a ficar todas as noites fora de casa. Acabou por se envolver com outra pessoa.» O desgaste da relação fez com que Maria Manuela colocasse um ponto final e passasse a viver como uma família monoparental, «conjunto de pessoas dentro de uma família clássica que tem a presença de apenas um dos progenitores, pai ou mãe com filho(s), avó ou avô com neto(s) não casado(s)» segundo o Instituto Nacional de Estatística (INE).
Ao contrário do que se costuma pensar, estas famílias sempre existiram como explica a socióloga Sónia Vladimira Correia. «As famílias monoparentais não são novas formas de família. A monoparentalidade, apesar da recente introdução teórica do conceito, não é um fenómeno actual. Este tipo de família sempre existiu, mas sob formas diferentes das que hoje se nos apresentam», explica a socióloga convidada para fazer parte da equipa portuguesa de um projecto internacional – coordenado em Portugal por Karin Wall do Instituto de Ciências Sociais. O estudo foi lançado com o objectivo de estudar o tema da conciliação trabalho/vida familiar em diversos tipos de família – entre os quais as monoparentais – e a socióloga explica que enquanto no passado este tipo de famílias resultava de falecimentos, ausência ou emigração, «a partir dos anos 70, depois do 25 de Abril, o retrato destes núcleos familiares começou a ganhar diferentes contornos, através do aumento contínuo das situações de separação conjugal».
E foi no seguimento de uma separação que Carla Rodrigues, jornalista de 35 anos, também passou a fazer parte das famílias monoparentais. «Uma relação é feita por duas pessoas e quando uma delas decide colocar um ponto final não há volta a dar. Neste caso o meu companheiro resolveu dar o salto. Estava cansado». Há um ano que vive sozinha com a filha, cuja educação a levou a pensar sobre qual o rumo que queria seguir. «Quando me separei a minha filha tinha apenas 19 meses, por isso não percebeu o que se estava a passar. É lógico que os filhos pesam neste tipo de decisão, mas o mais importante era eu. Enquanto me convencia do que tinha de fazer, dizia ‘agora tenho de viver a minha vida e mais tarde ela viverá a dela’. O importante é que os pais se dêem bem», assegura.
Monoparentais a aumentar
Na tese de mestrado, intitulada «Estratégias de Conciliação Trabalho-Vida Familiar em Famílias de Mães Sós», Sónia Vladimira Correia analisou os dados fornecidos pelo INE para concluir que «as famílias monoparentais em Portugal têm vindo a aumentar. Enquanto que em 1981 representavam sete por cento do total dos núcleos familiares, em 1991 e 2001 esta percentagem aumentou para nove e 11,4 respectivamente».
No entanto, segundo a socióloga, é preciso não esquecer que «este aumento está provavelmente sobreavaliado não só devido à mudança de critérios dos últimos Censos na definição de família monoparental, como ao facto de na última década surgir uma nova tendência associada ao aumento das famílias monoparentais de pessoas solteiras que podem surgir de nascimentos fora da conjugalidade (mães que nunca viveram em casal) ou dentro da conjugalidade (caso das uniões de facto».
50 iogurtes por semana
No caso de Maria Manuela, os problemas começaram a surgir quatro meses após a audiência em tribunal onde ficou decidido que ficaria com a guarda dos cinco filhos. «Foi estipulado que o pai deveria contribuir com 62,50 euros de pensão de alimentos por cada filho, bem como metade das despesas escolares. O problema é que só cumpriu durante os primeiros quatro meses. Há seis anos que não ajuda em nada. Zero». O que obriga a enfermeira a uma verdadeira ginástica mensal para esticar o vencimento. «Tenho quatro filhos menores e os gémeos estão num externato, já que a minha vida profissional não se coaduna com filhos. Se estiver a cuidar de um doente, por exemplo, não posso sair imediatamente para os ir buscar à escola. Felizmente tenho a ajuda das minhas filhas mais velhas sempre que é necessário, mas o meu ordenado é para o externato, para a renda da casa e pouco mais». A somar a todas as dificuldades está o apetite da família. «Gostam de comer tudo, seja carne, peixe, fruta ou legumes. Nunca tive aqueles problemas típicos das mães que têm de obrigar os filhos a almoçar ou jantar». Por semana, os cinco chegam a comer 50 iogurtes ou 2,5 kg de carapaus.
Por se tratar sobretudo de mães sós com crianças, as famílias monoparentais são, em geral, mais vulneráveis quer no plano económico, quer do ponto de vista dos cuidados prestados às crianças. De acordo com o estudo «Famílias Monoparentais em Portugal», realizado em 1999 por Karin Wall e Cristina Lobo, as mães divorciadas têm uma forte inserção no mercado de trabalho (81,3 por cento). Uma percentagem igualmente elevada nas mães solteiras (66 por cento) e nas mães separadas (65,1por cento), sendo, em contrapartida, muito baixa para as mães sós viúvas (30,3 por cento). Quanto ao estado civil, as investigadoras observaram que ainda predominam as pessoas divorciadas ou separadas. No entanto, enquanto que em 1991 as famílias de pessoas solteiras representavam 14 por cento e as viúvas 30 por cento, em 2001 a situação inverteu-se e são os solteiros que predominam com 26 por cento.
Trabalho/vida familiar
Para Sónia Vladimira Correia, estas são famílias «que têm contornos sociais diferentes dos outros tipos de agregados familiares e poderão sentir-se confrontadas com maiores dificuldades de diversas ordens». Na perspectiva da socióloga, possuir ou não recursos económicos determina o «acesso a serviços pagos, formais ou informais, e consequentemente influencia a constituição da estratégia de conciliação trabalho/vida familiar». Ou seja, «são as mulheres sós pertencentes a classes sociais mais favorecidas, com percursos escolares mais longos e profissões mais qualificadas, que dispõem de maior elasticidade na forma como conciliam ambas as realidades».
Gerir o tempo é a principal dificuldade encontrada por Carla Rodrigues. «É difícil entrar em piloto automático logo de manhã, com um esquema bem delineado para que nada falhe até a deixar na escola e, mais tarde, planear o regresso a casa». Para a jornalista, as famílias monoparentais têm vindo a aumentar pois «as pessoas não acreditam nas relações. Não avaliam o que é bom e mau. Temos tendência a valorizar apenas os aspectos negativos e, quando isso acontece, só apetece olhar para a porta do lado. Queremos escapar às rotinas, sem perceber que elas existem em todo o lado», diz. «Depois também existem mulheres que, ao chegarem a uma determinada idade – aquela que consideram ser a limite – não pensam tanto na estabilidade de uma relação, mas sim em terem tempo para ‘fabricar um filho’. Querem ser mães. Ponto final».
Cuidar de um ou mais filhos sem o apoio da mãe ou pai implica vários ajustes e adaptações, mas Sónia Vladimira Correia prefere não dramatizar. «As adaptações no seio de uma família monoparental são aquelas que qualquer família tem de fazer quando passa por uma alteração quer da sua constituição, quer do seu quotidiano. As tensões não são maiores, são diferentes. O que pode acontecer é que poderão surgir tensões advindas da dificuldade de cuidar das crianças e ser mães ou pais sós, mas isto não faz destas ‘famílias desestruturadas’, com menor capacidade para educar e formar cidadãos perfeitamente capazes e válidos».
Para Carla Rodrigues, o apoio da família e dos amigos é fundamental. «Os amigos são muito importantes para dar conselhos e colo. Já a família é fundamental como estrutura de apoio às tarefas diárias. Se não fossem os meus pais não tinha tempo para jantar com amigos, ir ao cinema, trabalhar até tarde, ausentar-me de Lisboa em trabalho e por aí fora. A minha vida teria de ficar suspensa até a minha filha crescer, uma vez que o pai não fica com ela um fim-de-semana completo».
Pais sós
Apesar das alterações verificadas nos núcleos monoparentais em Portugal ao longo dos últimos anos, existe uma característica que atravessou toda a história da monoparentalidade: ser uma realidade vivida essencialmente no feminino. «Em 1991, e os valores mantêm-se em 2001, cerca de 86 por cento do total das famílias monoparentais eram mulheres que viviam com os filhos solteiros de qualquer idade, ao passo que os homens na mesma situação não chegavam a representar 14 por cento», refere a socióloga.
No estudo efectuado em 1999, Karin Wall e Cristina Lobo afirmam que esta sobre-representação da monoparentalidade feminina poderá ser explicada pela razão que após um nascimento fora do casamento, ou união de facto, ou após uma separação ou divórcio, são quase sempre as mulheres que ficam com a guarda das crianças.
No caso de Rui Meleiro, de 30 anos, coube-lhe a tarefa de cuidar da filha após o divórcio. «Sempre tivemos altos e baixos, mas gostávamos um do outro. Até ao dia em que ela se interessou por outra pessoa e traiu-me durante sete meses. Quando saiu de casa levou a nossa filha. No entanto, por dificuldades económicas, acabou por vir entregá-la». Rui deu entrada em tribunal com um pedido de custódia da filha, a qual viria a conseguir. «A Madalena não estava a passar um bom momento, não tinha uma alimentação correcta e o seu comportamento mudou. Passou a ter problemas na escola e tentei ajudá-la. Na altura a juíza disse que há muito tempo que não entregava uma filha a um pai e aconselhou-me a aproveitar todos os momentos», o que Rui tem cumprido na íntegra. «A Madalena tinha quatro anos quando ficou à minha guarda e desde então que passo todos os momentos com ela. Durante o dia, enquanto estou a trabalhar, ela está na escola. Quando chegamos a casa fazemos os trabalhos da escola e depois brincamos um pouco. Ela adora jogar às cartas, consegue ganhar sempre», diz, entre risos.
Desde cedo que Rui optou por contar a verdade à filha. «Ela sabe que os pais se separaram e sempre que a mãe vem a Portugal deixo que matem saudades. Mas ela nunca foi muito agarrada à mãe». No caso de Maria Manuela, é a enfermeira que faz questão de levar os filhos a casa do pai nos dias estipulados para as visitas, dada a falta de interesse do ex-companheiro que, entretanto, casou e já tem outro filho. «Há seis anos que saiu de casa e após os dois primeiros anos deixou de vir buscar as crianças. Como acho que eles têm direito de ver o pai, ao sábado ficam em casa dos avós paternos e no domingo vão a casa dele. Tenho de lhes fazer ver que também têm de estar com o pai». Apesar de não se arrepender de nada, ainda há situações que a fazem chorar ao fim de mais um dia, quando os filhos já estão todos a dormir. «Sempre que me pedem alguma coisa tenho sempre de dizer não e acho que eles também mereciam uma recompensa por tudo o que passam, pelo que se esforçam». No último Natal, Maria Manuela conseguiu juntar dinheiro para comprar a bicicleta tão desejada por um dos filhos. «Ele já andava a pedir a bicicleta há muito tempo. Quando abriu o presente e viu o que era, os seus olhos ficaram tão felizes que valeu por todas as prendas que lhe tivesse dado».