Sobredotado: pequenos génios

alt

São alunos brilhantes, com capacidades excecionais, mas muitos são rotulados de hiperativos ou incómodos. Porque estão desmotivados, frustrados, aborrecidos… Ser sobredotado é um desafio e exige que pais e escola estejam atentos e alinhados para que possam desfrutar de todo o seu potencial.


Aos dois anos, João já sabia dizer o abecedário de A para o Z e do Z para o A, sem se enganar. Aos três, a educadora apercebeu-se de que ele já sabia ler. Aprendera sozinho. Afinal, era “só” juntar as letras… Quando chegou à sala dos cinco anos, colocou-se a hipótese de João “saltar” diretamente para o 1º ano, mas a mãe e a educadora acharam que era importante ele ter tempo para brincar. “Depois arrependi-me, porque ele, de facto, estava muito mais avançado e acabou por ser um ano pouco motivante para ele”, conta Susana, admitindo que nunca lhe passou pela cabeça que o filho fosse sobredotado. “Para mim, era um miúdo interessado, que tanto ouvia música clássica e Ella Fitzgerald como ouvia as músicas do Panda…”. Aliás, admite, “eu tinha a ideia de que os sobredotados eram pessoas estranhas, boas a tudo e o João não é assim”. Mas reconhece que, com os resultados dos testes de diagnóstico (feitos no início do 2º ano e que confirmavam as suas capacidades excecionais) vieram também respostas para algumas preocupações: “Comecei a compreender algumas reações que o João tinha e que eu achava que eram birras ou má educação… Nas festas de aniversário, por exemplo, era frequente os miúdos estarem todos a brincar e ele sozinho num quarto… eu não percebia e ficava ‘doente’ com aquilo”.


Com os resultados na mão, a professora do 2º ano pediu a Susana que comprasse antes os manuais do 3º e, no fim desse ano, o João passou para a turma do 4º ano. Apesar de todo o apoio que sempre tiveram por parte da professora e da escola (pública) que frequentava, não foi uma transição fácil.


“No início, quando cheguei ao quarto ano, senti-me um pouco excluído, por isso acabava por brincar com os meus colegas das turmas anteriores (da minha idade). Mas no segundo período já me comecei a dar bem com os colegas de turma. No ano a seguir, mudei de escola e foi um bocado difícil integrar-me. No início do 5º ano, quando eu dizia que tinha saltado um ano, eles olhavam para mim como se eu me estivesse a gabar. Acabei por fazer um amigo apenas, com quem brincava. Quando recebi o resultado do primeiro teste de matemática tive 86 por cento, senti-me horrivelmente mal, chorei imenso, não estava habituado a ter estas notas… nem tive coragem de contar à minha mãe… pedi ao meu amigo para telefonar à minha mãe. Aos poucos fui fazendo amigos… Agora sinto-me integrado e está tudo bem”, conta à Pais&filhos.


Em cada turma de 30 alunos, existirá em média um sobredotado.

No entanto, a maioria está por identificar


Aos 12 anos, João frequenta o 8º ano, anda nos escuteiros, faz teatro, pratica karaté e já tem o seu plano de vida traçado. Aliás, o plano B também já está delineado! “Primeiro, a minha ideia era ir para a universidade, aos 17 anos, tirar o curso de gestão ou economia, aos 22 ir para Londres tirar o curso de teatro, aos 25 ir para Hollywood e aos 30/35 voltar para Portugal. Mais recentemente, mudei os planos: vou tirar engenharia informática no Técnico, fazer o mestrado e depois vou para Londres ou fico cá no Conservatório. O teatro é o plano A, o resto é para garantir que tenho emprego”.


A recente mudança de planos surgiu por alguma pressão da mãe. “Por ele, ia logo para Londres. O teatro vem-lhe cá de dentro e é uma coisa que lhe dá imenso gozo, mas é uma área difícil…”. A verdade é que João consegue conciliar os estudos com os ensaios e, apesar de ter pouco tempo para si, continua a tirar excelentes notas. “Tem de haver muita disciplina, mas por ser uma paixão, é nestas alturas que o João tem as melhores notas, porque aproveita o pouco tempo que tem para se dedicar a 100 por cento aos estudos”, refere Susana.


“Quando comecei a fazer teatro e estava super concentrado em tudo e tive notas geniais – muitos testes com 100 por cento. Este ano estou a estudar imenso também”, diz João, admitindo que coloca muito pressão sobre ele próprio e não gosta de baixar as expectativas. Disciplinas preferidas não tem, “são tantas…”, mas admite que gosta muito da área das ciências. Já a relação com os professores nem sempre é a melhor: “Alguns tem muitas expectativas comigo, outros acham que eu sou um ‘chico esperto’ que tem a mania… tenho algumas disputas com certos professores e, de vez em quando, posso exceder-me um bocado a mostrar que estou certo… eles não reagem bem”. Fazer amigos é uma das suas qualidades, mas “mantê-los é mais difícil porque o meu padrão é elevado: é preciso que não se fartem logo de mim (eu falo muito!), que me compreendam, que me ajudem”.


Alunos incómodos
As estatísticas dizem que três a cinco por cento das crianças e jovens em Portugal são sobredotados. Ou seja, em cada turma de 30 alunos, existirá, em média, um com características de sobredotação. No entanto, a maioria está por identificar.


“Muitos destes jovens passam despercebidos na escola por falta de estruturas de identificação e acompanhamento. Muitos são apenas percebidos como hiperativos, desinteressados ou como alunos incómodos, em conflito com o próprio ensino que não corresponde às suas necessidades e expectativas”, esclarece Alberto Rocha, psicólogo e presidente da direção da Associação Nacional para o Estudo e Intervenção na Sobredotação (ANEIS), acrescentando que “uma percentagem significativa de professores confessa nunca ter detetado um aluno sobredotado ao longo da sua vida profissional”. Isto revela que, na grande maioria, os professores não estão preparados para lidar com alunos sobredotados.


“A sobredotação não é a maravilha que alguns pais pensam,

nem o problema que muitos temem”


“A investigação mostra que os professores não sabem, na sua generalidade, reconhecer as características de sobredotação – inteligência muito acima da média, criatividade e motivação para a tarefa. E maior parte dos professores não diferencia, sendo uma das razões o número elevado de alunos por turma”, refere Sara Bahia, docente na Faculdade de Psicologia da Universidade de Lisboa e coordenadora da ANEIS Lisboa, salientando que “existe também uma atitude de desprezo por se pensar que é apenas uma elite da população que é sobredotada, o que não é verdade, pois em média quatro em 100 alunos de qualquer meio socioeconómico têm características de sobredotação”. O que acontece é que “não são reconhecidos e alguns acabam por encontrar estratégias de negação do seu próprio potencial para serem aceites no meio escolar”.


Alberto Rocha reconhece que a sobredotação “é uma área que tem sido fortemente negligenciada, esquecida, incompreendida ou ignorada pelos educadores e pela comunidade em geral”. E isso tem consequências: “A grande maioria destas crianças e jovens não recebe qualquer tipo de orientação pedagógica, enfrentam diversos problemas decorrentes da falta de atendimento que corresponda às suas necessidades e interesses, ficando, em grande parte a dever-se a tarefas de aprendizagem demasiado desniveladas das suas potencialidades, não tendo oportunidade de explorar o que aprenderam. Não são estimuladas a desenvolverem as suas capacidades, a explorarem outros horizontes do conhecimento, nem a aprenderem os conteúdos curriculares de forma mais aprofundada e, consequentemente, desmotivam.”


O que é ser sobredotado?
No passado, o QI (quociente de inteligência) era o principal indicador da sobredotação: uma criança com resultados acima da média nos testes de inteligência seria classificada como sobredotada. Hoje sabe-se que há mais fatores, além do QI, que indicam características de excecionalidade.


“Dependendo do tipo de inteligência que a criança tem, podemos dizer que o perfil é, de uma forma geral, constituído pelas seguintes características: capacidade elevada nas realizações académicas; interesse sobre temas complexos, curiosidade elevada, rejeição de rotinas, motivação para as áreas de âmbito científico; perfecionismo; sensibilidade pelas grandes causas mundiais; gosto pelo desenho ou dificuldade nas áreas de E.V. e E.T (Educação Visual e Educação Tecnológica); atitudes de líder e poder comunicativo ou dificuldade nas relações sociais”, indica Ana Fernandes, professora na Escola Superior de Educação de Paula Frassinetti e vice-presidente da Associação Portuguesa de Crianças Sobredotadas (APCS).


O diagnóstico da sobredotação só pode ser feito a partir dos seis anos, mas antes desta idade já há indicadores que sugerem capacidades excecionais: “Grande curiosidade, avidez de saber, (perguntas constantes/ respostas dadas geram novas perguntas); linguagem mais elaborada; muita energia (que pode ser confundida com hiperatividade); atitudes desafiadoras (foge às regras; afirmação precoce de vontade própria e independência; sensibilidade e sentido de justiça social; em alguns casos alterações do sono”.


Ana Fernandes lembra ainda que “a sobredotação não é a maravilha que alguns pais pensam, nem o problema que muitos temem”. E explica: “Naturalmente, uma criança sobredotada tem comportamentos que a distingue das restantes, com tudo de bom e de mau que isso traz (podendo destacá-las ou exclui-las), cabendo aos pais orientar os seus filhos pelo caminho adequado”. David Guedes, psicólogo na ANEIS Lisboa, acrescenta que “muitas pessoas têm uma ideia um pouco romanceada sobre o que é a sobredotação e o que deve ser uma criança sobredotada. Por esse motivo, ouvimo-las dizer que nunca conheceram um sobredotado, quando na verdade é provável que tenham conhecido vários”.


A verdade é que as características de sobredotação colocam desafios, por vezes bastante difíceis, à adaptação, quer na escola, quer a nível social. “A nível escolar, a maior rapidez pode levar à impaciência, o perfeccionismo à frustração, a curiosidade pode ser confundida com petulância ou a criatividade com inconformismo”, enumera David Guedes. A nível social, “cada criança faz um aproveitamento diferente das suas características: alguns são muitos hábeis socialmente, outros nem tanto”. Aqueles que mais procuram a ANEIS “são os segundos porque não encontram eco para as suas preocupações e para os seus interesses. Sentem-se diferentes dos demais e estar entre iguais é benéfico para eles.” Alberto Rocha acrescenta que “o grande desafio a nível social é a diferença de interesses entre eles e o grupo de pares, resultando em alguns casos na rejeição e violência para com eles… Não são raros os casos que já sofreram de bullying”.


Pais perdidos e confusos
Perante um disgnóstico de sobredotação, é natural que os pais se deparem com um “turbilhão de emoções”. É preciso compreender para saber gerir expectativas e, sobretudo, para que possam orientar os filhos para que desfrutem do seu potencial. É frequente sentirem-se perdidos e confusos, mas ao esclarecerem as suas próprias dúvidas, vão obter respostas fundamentais.


“Os pais têm um papel essencial na integração destas características em contexto familiar e isso exige uma gestão muito delicada das suas expectativas face ao futuro dos seus filhos”, salienta David Guedes. E sublinha: “A sobredotação é, antes de mais, um potencial que pode ser transformado e aproveitado de formas muito diferentes. A ideia de que é um dom inato foi ultrapassada e hoje preocupamo-nos mais com o processo. Pode haver um potencial que é inato, mas tudo o resto é uma construção que decorre ao longo da vida. Isto transforma dramaticamente o modo como se aceita e gere a sobredotação e é, em larga medida, aos pais que cabe a tarefa de aliviar o peso que esta palavra pode ter sobre a criança.” Sara Bahia acrescenta que é preciso que os pais “promovam a sua autonomia, acompanhando a sua vontade de explorar o mundo, sem medos... Dando oportunidades de convívio com o conhecimentos e com os outros - sejam eles quem forem - mais novos, da mesma idade, mais velhos...” E, muito importante, “ouvindo-a”.


Como manter a motivação na sala de aula

A frustração e a desmotivação são situações muito frequentes nos alunos sobredotados. Afinal, eles são mais rápidos, mais diligentes e o nível de dificuldade dos conteúdos nem sempre é desafiante. Ana Fernandes explica como se consegue manter a motivação de uma criança sobredotada na sala de aula:
- Deve beneficiar de diferenciação pedagógica nas atividades da sala;
- Devem-lhe ser atribuídos pequenos papéis, na sala de aula;
- A sua curiosidade deve ser satisfeita, ao seu nível;
- Deve ser conduzida no respeito pelas regras estabelecidas;
- A interação com outras crianças deve ser fortalecida;
E lembra que tão importante como “alimentar” as suas habilidades cognitivas “é atender ao seu crescimento equilibrado e saudável e, para isso, as atividades motoras, expressivas e relacionais não podem ser descuradas”.


“Tenho tantas perguntas na minha cabeça!”

Madalena detesta ser o centro das atenções e faz o que pode para não se evidenciar na escola, o que não é fácil para quem tem notas excecionais: 5 a todas as disciplinas, menos a Educação Física. “Ela sempre fez um esforço enorme para não se destacar. A professora do 1º ciclo chegou a dizer-me que ela fazia perguntas tontas só para não mostrar que sabia”, conta a mãe, Helena. É tímida, mas determinada e muito exigente consigo própria. “Quando teve 3 a Educação Física obrigou-me a ir à Decathlon comprar bolas, para treinar. E subiu a nota para 4!”, diz Helena.
Madalena tem 11 anos, está no 6º ano no Conservatório de Música. Os professores não sabem que é sobredotada, por opção. “Nós preferimos que não se saiba, assim não há tantas expectativas”, explica a mãe, que é psicóloga e que sempre trabalhou com crianças “cheias de dificuldades” e, por isso, achava que a filha “encaixava na normalidade”: “Tinha uma família estruturada, era uma criança interessada… mas, de facto, havia alguns pormenores: sabia o alfabeto aos 18 meses, dizia-nos coisas como ‘Vocês não entendem, eu tenho tantas perguntas na minha cabeça!’”.
Quando entrou para o 1º ano, Madalena andava triste e chorava muito. “Foi difícil, porque ela era muito boa aluna, fazia as coisas muito rápido e aborrecia-se”. Com o diagnóstico de sobredotação veio também a hipótese de “saltar” de ano, “mas ela não quis, não queria deixar os amigos nem a professora, que era espetacular. Por isso nunca saltou”. Toca violino desde os três anos, mas não sabe se o seu futuro será na música. “Estudo violino duas horas todos os dias, mas ainda fico um pouco nervosa quando subo para o palco”, admite. Não tem uma disciplina preferida e, apesar de colocar muita pressão sobre si, sabe que “é fácil tirar boas notas”. Por isso, prefere brincar a fazer os TPC.


Leia também

Filhos de um deus maior

10 mandamentos para o amor dos pais

Portugal tem 40 mil crianças sobredotadas


Consultório

 "O meu filho, que fez recentemente quatro anos, vive intensamente esta altura do ano. Ainda acredita no Pai Natal e acha que é ele quem lhe traz as prendas. Ainda...

Leia Mais