Brinquedos para todos!

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É a brincar que as crianças experimentam e conhecem o mundo. Se queremos uma sociedade que promova a igualdade de género, temos de começar por dar os mesmos direitos de brincadeira a meninas e meninos.


Basta entrar em qualquer hipermercado ou loja de brinquedos para rapidamente encontrarmos uma parede com prateleiras cheias de caixas rosa e outra com prateleiras cheias de caixas azuis. Na maior parte dos catálogos de brinquedos, os rapazes continuam a brincar com carrinhos e a fazer construções e as raparigas a brincar com bonecas e a tratar da lida da casa.
“Apesar de existirem alguns estudos que apontam para uma preferência de origem genética, associada ao género, por determinado tipo de brinquedos, eu diria que não existem brinquedos dirigidos especificamente a rapazes ou a raparigas”, começa por explicar a psicóloga Inês Afonso Marques. “Devem existir brinquedos para as crianças explorarem livremente em resposta a uma curiosidade inata do ser humano. Brinquedos ‘específicos’ para rapazes ou raparigas são uma resposta a estereótipos ou construções sociais”, continua a coordenadora da equipa infanto-juvenil da Oficina da Psicologia.

Maria João Cunha, investigadora do Centro Interdisciplinar de Estudos de Género (CIEG), concorda que as diferenças biológicas entre rapazes e raparigas não são justificação para a divisão de género que se vê nos folhetos das lojas de brinquedos: “O que se verifica é o estereótipo.

Nas páginas azuis estão os brinquedos que promovem a capacidade de construção e de abstração. Nas páginas rosa estão os brinquedos ligados às atividades domésticas. Se queremos que a sociedade mude, temos de começar na infância”, alerta a investigadora.

Hoje em dia, já se começa a ver algumas alterações nestes padrões. Os blocos de construções (legos), por exemplo, que até há pouco tempo apelavam quase exclusivamente aos meninos, já existem também em linhas rosa. No entanto, enquanto nas caixas azuis temos os bombeiros ou os polícias, nas caixas rosas temos as princesas e as professoras. Ou seja, os temas mantêm o estereótipo. Outro exemplo são as cozinhas de brincar, que através das cores se dirigiam às meninas. Com a moda dos concursos de chefs, as cozinhas passaram a ser terreno de homens e mulheres. Surgiram então as cozinhas dirigidas aos rapazes. Vêm em caixas azuis ou de outras cores que não rosa, mas essa não é a única diferença: as cozinhas que não são cor-de-rosa têm um aspeto mais profissional, de cozinha de chef, enquanto as cozinhas cor-de-rosa são a reprodução de uma cozinha de casa. “Os brinquedos que apelam às raparigas estimulam a função, enquanto os brinquedos que apelam aos rapazes estimulam a profissionalização”, critica Maria João Cunha.

Mais pressão nos rapazes

Mas se as raparigas perdem oportunidades de desenvolvimento ao não brincarem com carrinhos, legos, construções, etc., também os rapazes ficam a perder ao serem impedidos de brincar que estão a cuidar de um bebé. “Sendo os brinquedos e brincadeiras formas privilegiadas de ensaiar comportamentos, como poderia um rapaz desempenhar o seu papel de pai se nunca tivesse dado de comer ou mudado a fralda a um boneco? Poder pode, mas toda a experimentação de interesses, ensaios comportamentais e desenvolvimento de competências motoras, cognitivas, emocionais e sociais emergem através do brincar”, explica a psicóloga, sublinhando: “A necessidade que existe é de brincar-se livremente, variando-se os brinquedos e as brincadeiras, sem pressões sociais”.
Maria João Pinho reforça: “Quando as crianças brincam estão a modelar, a imitar o que veem e a desenhar perspetivas de futuro. Não devem ser limitadas com base em estereótipos que a sociedade está a combater”.
Por tudo isto, à pergunta “devemos oferecer bonecas a meninos?”, a resposta é claramente ‘sim!’. Mas, apesar de a nossa sociedade caminhar para a igualdade entre géneros, existe ainda algum pudor em deixar os rapazes aproximarem-se das prateleiras cor-de-rosa. “Não se deve travar um menino que queira brincar com bonecas, fazendo de seu cuidador, ou que finja passar a ferro, fazer comida ou fazer penteados. Por vezes, existe um receio infundado de que um menino brincar com ‘brinquedos de menina’ possa ter impacto em questões de identidade sexual. Contudo, na realidade, o jogo simbólico do faz de conta, essencial no crescimento, é importante para que a criança possa experimentar fazer várias coisas e colocar-se no papel de outras pessoas, não tendo qualquer impacto nas questões de identidade sexual”, explica Inês Afonso Marques.

Acabar com os estereótipos
Em março deste ano, o McDonald’s viu-se envolto em polémica em relação aos brindes oferecidos, porque existia uma divisão em brinquedos de menina e de menino. Além da alusão ao estereótipo – princesas e póneis para meninas, super-heróis e carros para meninos – os empregados perguntavam aos clientes se queriam um brinquedo de menina ou de menino. Uma pergunta que, à partida, inibia as crianças de quererem os brindes que não seriam associados ao seu género. Noutros países, esta questão já tinha sido eliminada há algum tempo e os brinquedos tinham deixado de fazer alusão ao género, mas em Portugal ainda se mantinha. O assunto ganhou importância de Estado e, na altura, Catarina Marcelino, secretária de Estado da Igualdade, comentou ao DN: “Não há brinquedos de menino e de menina. A prática de dividir brinquedos por sexo é uma atitude discriminatória que reforça os estereótipos de género. Obviamente não podemos [o governo] concordar com essa discriminação”. Entretanto, a marca de hambúrgueres alterou as diretivas aos funcionários portugueses para que descrevessem os brindes pelas suas qualidades e não os oferecessem conforme o género do cliente.


Brinquedos influenciam futuro
Também em abril deste ano, a divisão de brinquedos por género chegou à Casa Branca. Na conferência intitulada “Acabar com o estereótipo de género nos média e nos brinquedos”, participaram algumas das principais marcas mundiais de brinquedos, comprometendo-se a tomar medidas para acabar com os estereótipos de género e “ajudar as crianças a explorar, aprender e sonhar sem limites”.
O objetivo principal foi desenvolver estratégias para encorajar as meninas a seguirem carreiras nas STEM – acrónimo que junta as profissões ligadas às Ciências, Tecnologias, Engenharias e Matemática (Science, Technology, Engineering, Mathematics). No relatório divulgado, informava-se que as empresas de STEM oferecem as carreiras mais bem pagas e mais desejadas, no entanto apenas 29 por cento dos lugares são ocupados por mulheres. “Estudos mostram que os interesses, as ambições e as capacidades das crianças podem ser moldados desde cedo pelos média e pelos brinquedos a que estão expostos, e que estes influenciam os seus estudos e as suas carreiras. Portanto, essas experiências precoces podem afetar não apenas o seu desenvolvimento e escolhas de vida, mas a composição da nossa força de trabalho e da força da nossa economia para as próximas décadas”, concluíram os especialistas.

No Reino Unido, a campanha Let Toys Be Toys (www.lettoysbetoys.org.uk) chama constantemente a atenção para este assunto, apelando para que “as empresas de brinquedos e as editoras de livros parem de limitar os interesses das crianças promovendo brinquedos e livros exclusivos para rapazes e outros para raparigas”.
Apesar de muitos fabricantes continuarem a insistir na divisão entre brinquedos de meninas e de meninos, quem tem filhos rapazes sabe bem que é habitual eles gostarem de brincar com bonecas, com cozinhas, com pás e vassouras. Assim como é normal as meninas gostarem de jogar à bola, fazer construções ou corridas de carrinhos. O que acontece, muitas vezes, é que acabam por ceder à pressão cultural, do marketing ou mesmo dos familiares para preferirem os brinquedos mais associado ao seu género.
Os brinquedos e as brincadeiras “são estruturantes na construção da personalidade da criança”, como explica Inês Afonso Marques: “Brincar é uma das tarefas da infância com maior responsabilidade no seu desenvolvimento cognitivo, emocional, social e motor. Pelo brincar a criança desenvolve a criatividade, a imaginação, a experimentação de papéis e a compreensão do mundo que a rodeia. Assim, os brinquedos e as brincadeiras a que tem acesso possibilitam a construção da sua personalidade em diferentes direções, sendo que brinquedos diferentes potenciam o desenvolvimento de capacidades específicas”. Como queremos que homens e mulheres dividam as tarefas, se, desde cedo, ensinarmos apenas às meninas a tratar da casa e das crianças?


Desenvolvimento da identidade de género

Até aos três anos: é formada a identidade do género, ou seja, a criança ganha consciência de que é um rapaz ou uma rapariga e consegue classificar os outros conforme o género. Porém, têm dificuldades em compreender que o género é uma característica permanente e que se o masculino e o feminino têm corpos diferentes também partilham muitas características.
Dos quatro aos seis anos: as crianças estão especialmente atentas aos comportamentos relacionados com os dois géneros. Se é habitual que apenas vejam mulheres a cozinhar e homens a tratar dos automóveis é natural que relacionem estas atividades com cada um dos sexos. O inverso também é válido, ou seja, se os comportamentos não forem limitados a um género, a criança não faz qualquer ligação. A partir dos seis anos: a maior parte das crianças compreende que o género é uma característica permanente e que não é passível de ser alterada através de opções como o corte de cabelo ou o vestuário.


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