As crianças são mesmo cruéis?

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Aos sete anos, Maria começou a dizer que não queria ir à escola, primeiro com tristeza e depois com um certo desespero que levou os pais a tentar compreender o motivo daquela mudança de comportamento. Depois de várias conversas, perceberam que a filha começara a ser excluída de algumas brincadeiras no recreio, como saltar à corda ou jogar à apanhada, por ser “gorda”. “Lembro-me perfeitamente de passar pelo mesmo que ela e era terrível”, conta a mãe, Isabel, admitindo que “a escola primária não foi fácil e deixou marcas na minha autoestima. Tenho medo que a Maria sinta o mesmo”. Não é raro ouvirmos dizer que as crianças conseguem ser bastante cruéis, em particular com crianças “diferentes”: são apontadas por serem gordas, terem as orelhas grandes, terem um nome invulgar ou usarem roupa “esquisita”… os motivos são os mais variados e servem de desculpa para que sejam apontadas, sem piedade, na escola. Mas será mesmo por maldade?
“As crianças não são cruéis, as crianças podem ser cruéis”, defende o psicólogo Rui Brasil, explicando que “o conceito do bem e do mal não é algo que se encontra inscrito biologicamente no ser humano, é sim um construto social que existe para a nossa organização enquanto seres que vivem em conjunto, e encontra-se numa dimensão ética e moral”. Estes conceitos, acrescenta, “tal como o respeito, a honestidade e a generosidade, emergem nos comportamentos da criança a partir da segunda infância (entre os três e os seis anos) e encontram-se em construção até à adolescência, altura a partir da qual se espera que o jovem tenha o domínio das suas emoções e consiga aplicar todos os conceitos que adquiriu ao longo do seu crescimento na sua vida diária”.


As regras da interação
Na verdade, as crianças têm uma forma de pensar diferente dos adultos: nos primeiros anos vivem mergulhados na sua pequena bolha, são “autocentrados e o mundo existe apenas para satisfazer as suas necessidades”. A partir da segunda infância, “descobrem que o outro não serve apenas para lhes dar satisfação, mas que também tem necessidades”. E começam a perceber que a interação tem regras. “Num primeiro momento, estas novas relações e as suas regras não são fáceis de dominar, e por isso irão recorrer aos adultos de referência (normalmente os pais) para perceber que resposta ou comportamento devem ter perante determinada situação”, explica Rui Brasil.
É essa falta de habilidade inicial – aliada à curiosidade natural da idade – que fazem com que digam ao amigo “tens umas orelhas mesmo grandes!” ou perguntem ao avô “porque tens o nariz tão vermelho?”. Não o fazem com maldade, estão apenas a tentar desvendar o mundo à sua volta e ainda não sabem que alguns comentários não são apropriados.
O desenvolvimento cerebral ajuda a explicar a situação: o córtex pré-frontal – que regula o impulso, a atenção, a lógica, a gestão do risco, o pensamento organizado, etc. – só se desenvolve mais tarde (e apenas estará concluído por volta 25 anos), o que significa que as crianças, numa primeira fase, funcionam com base num cérebro relativamente básico e primitivo, que não lhes permite compreender determinados aspetos da interação com o outro.

Quando uma criança de seis anos salienta uma diferença física noutra está apenas a responder à sua própria curiosidade, podendo não ter a noção de que está a magoá-la. É por isso que, muitas vezes, as crianças são rotuladas de cruéis por “gozarem” com meninos com características diferentes da maioria. Claro está que estes comentários, mesmo que inocentes, têm impacto nas suas “vítimas” e é importante que compreendam porque não os devem fazer. E aqui destaca-se em especial o papel dos pais.
“Na minha opinião, a crueldade manifestada pelas crianças é uma consequência da educação. De uma forma inata, ela não existe”, defende Rui Brasil. E explica: “O que existe é uma resposta a uma determinada situação, e essa resposta baseia-se nas experiências anteriores da criança”. Ou seja, “se perante uma situação semelhante foi recompensada ou punida”. E aqui o papel do adulto de referência é fundamental para a criança enquanto exemplo. “Se enquanto pai, faço comentários ou tenho comportamentos que não são apropriados ou que são cruéis, a minha filha vai reproduzi-los quer porque entende que essa é a atitude correta, quer para me ‘copiar’ enquanto modelo, quer para me agradar enquanto figura de afeto de referência.” No fundo, são pais que vão ajudá-las a arrumar as suas reações no compartimento do “bem” ou do “mal”, permitindo que, a partir daí, estruturem as suas atitudes.


Crescer com afeto e apego

A afetividade e o apego são, por isso, fatores determinantes no saudável desenvolvimento da criança e decisivos para o seu equilíbrio emocional e para a capacidade de sentir empatia e respeito pelos outros à sua volta.
“A forma como um indiví0duo se relaciona com o outro, ditará a forma como se comportará. E desde o nascimento que aprendemos de forma “inata” a realizar esta contingência. Por isso, a relação com os principais cuidadores é tão importante na formação da personalidade de um indivíduo”, refere Ana Durão, especialista em Psicologia Clínica e da Saúde, acrescentando que “ela pode ditar a diferença no equilíbrio emocional e, irá influenciar, a forma como essa criança (e futuro adolescente e adulto) passará a interagir com o mundo ao seu redor”.
Bons cuidadores, sublinha a psicóloga, serão “contingentes às necessidades dos filhos e isso permitirá desenvolver uma afetividade positiva, segura, estável, possibilitando que essa criança cresça com maior confiança e autoestima, mais segura, mais capaz de desenvolver relações de empatia com os outros e que consiga se vincular emocionalmente com os outros, ter relações de proximidade, intimidade e respeito.”
Por tudo isto, a empatia pode e deve ser trabalhada desde cedo. Mais precisamente “a partir do momento em que a criança consegue perceber que não está no centro do mundo, ou seja, a partir dos três anos”, esclarece Rui Brasil, sublinhando que o processo é contínuo e estende-se ao longo de toda a infância. Sempre com os pais como exemplo de referência. Neste caso, como em tantos outros, o ditado “Faz o que eu digo, não faças o que eu faço” é para esquecer…


Quando o “padrão de afetividade entre a criança e os cuidadores é negligente ou abusivo, é possível que essa criança apresente padrões comportamentais perturbados e até mesmo antissociais”, revela a psicóloga Ana Padrão, sublinhando que, de acordo com a classificação internacional, “não existem crianças psicopáticas, mas existem crianças com sério comprometimento ao nível da sua conduta”. E uma criança “com um problema de conduta poderá revelar-se impulsiva, instável, insensível, agressiva e até mesmo cruel”. Estes casos, “independentemente da idade, devem constituir um alerta para os pais, para a família e para os educadores ou professores”.
Existem sinais de alarme, que “isoladamente não são problemáticos, mas que conjugados ajudam na definição de uma criança que necessita de ajuda de profissionais”, acrescenta o psicólogo Rui Brasil, exemplificando: prazer manifesto por gozar e ridicularizar situações ou pessoas; falta de empatia e dificuldade em se colocar no lugar do outro; temperamento facilmente irritável ou dificuldade no controlo da raiva; dificuldades ao nível da gestão das emoções, respondendo facilmente com violência física e verbal; relutância em aceitar responsabilidade sobre as suas ações e culpabilização dos outros dos seus problemas. Estas crianças, defende Ana Durão, “devem ser ajudadas assim como as suas famílias de forma a prevenir sérios problemas na escola, na relação com os pais, colegas e educadores”. E “quanto mais cedo se poder intervir menos a probabilidade de desenvolverem uma conduta antissocial na vida adulta”.


Treinar a empatia

Sim, é possível treinar a empatia das crianças, ao longo da sua vida e em diferentes contextos. O psicólogo Rui Brasil explica como:
- Ser o exemplo, pois os outros serão o reflexo dos nossos comportamentos;
- Falar sempre pela positiva, evitando utilizar a palavra “Não” (“É melhor que digas…” versus “Não digas…”);
- Abordar a empatia nas situações do quotidiano, com quem está próximo e é importante (“A avó está doente, vamos visitá-la e levar-lhe flores. Quando estás doente gostas de receber prendas, correto?”
- Mostrar que se sabe ouvir o outro, e que espera que o outro nos ouça (“Agora a mãe e o pai estão a falar, falas a seguir, está bem?”);
- Participar ativamente numa causa da comunidade (distribuição refeições a pessoas carenciadas, participar numa marcha pelos direitos dos animais, ir visitar o lar de terceira idade do bairro…).


Sinais de alerta

Entre a criança e os cuidadores é negligente ou abusivo, é possível que essa criança apresente padrões comportamentais perturbados e até mesmo antissociais”, revela a psicóloga Ana Padrão, sublinhando que, de acordo com a classificação internacional, “não existem crianças psicopáticas, mas existem crianças com sério comprometimento ao nível da sua conduta”. E uma criança “com um problema de conduta poderá revelar-se impulsiva, instável, insensível, agressiva e até mesmo cruel”. Estes casos, “independentemente da idade, devem constituir um alerta para os pais, para a família e para os educadores ou professores”.
Existem sinais de alarme, que “isoladamente não são problemáticos, mas que conjugados ajudam na definição de uma criança que necessita de ajuda de profissionais”, acrescenta o psicólogo Rui Brasil, exemplificando: prazer manifesto por gozar e ridicularizar situações ou pessoas; falta de empatia e dificuldade em se colocar no lugar do outro; temperamento facilmente irritável ou dificuldade no controlo da raiva; dificuldades ao nível da gestão das emoções, respondendo facilmente com violência física e verbal; relutância em aceitar responsabilidade sobre as suas ações e culpabilização dos outros dos seus problemas. Estas crianças, defende Ana Durão, “devem ser ajudadas assim como as suas famílias de forma a prevenir sérios problemas na escola, na relação com os pais, colegas e educadores”. E “quanto mais cedo se poder intervir menos a probabilidade de desenvolverem uma conduta antissocial na vida adulta”.


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