Direitos: ainda não protegemos as nossas crianças
Quinta, 01 Junho 2017 | Visto - 3997
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A Convenção sobre os Direitos da Crianças é o tratado de Direitos Humanos mais ratificado de todo o mundo. E Portugal foi um dos primeiros a assumir o compromisso, há 26 anos. Mas muitos dos direitos ficam-se pelo papel.
Estamos habituados a pensar em violações dos direitos das crianças em contextos de guerra, catástrofe, crises de refugiados, grave escassez alimentar – situações em que estes direitos são colocados em causa de forma dramática e muito visível, mas também distante da nossa realidade. E talvez isso enviese um pouco a nossa visão e nos faça sentir que, no nosso próprio país, esta é uma questão que não se coloca. E, à primeira vista, em Portugal, temos, de facto, razões para otimismo. Afinal, somos um país que não sabe o que é guerra há muito tempo, um país de “primeiro mundo” – pese embora as dificuldades que enfrentamos –, fomos uma das primeiras nações a ratificar a Convenção sobre os Direitos da Criança – logo em 1990 – e temos uma tradição da valorização dos laços familiares. Na realidade, até a baixa natalidade que faz hoje parte da nossa conjuntura favorece esta visão da criança como um ser especial. No entanto, um olhar mais atento pode verificar que, como noutras partes do mundo, as crianças portuguesas continuam a não ver respeitados alguns dos seus direitos.
Ana Perdigão trabalha na área jurídica do Instituto de Apoio à Criança (IAC) há 26 anos e garante que a experiência colhida ao longo deste tempo lhe faz chegar, diariamente, situações de inúmeras violações nas mais diversas áreas. “Se, por um lado, Portugal dispõe de um vasto cenário legal que visa proteger e acautelar os seus direitos, a verdade é que para muitas deles, eles não saem do papel.”
A responsável aponta como situação mais frequente as crianças expostas a situações de divórcio ou separação dos pais, muitas das vezes alvo de manipulação por parte de um dos progenitores para retirar das suas vidas a figura do outro progenitor. “Viola-se desta forma o direito que a criança tem a crescer de forma saudável, usufruindo da presença efetiva de ambos os progenitores, apesar da separação destes.” Mas, apesar de esta ser a situação mais frequente, está longe de ser a única: “Pobreza, abandono afetivo, questões de saúde mental e a não resposta para a efetiva proteção de crianças com necessidades especiais” são outras das situações do dia-a-dia que concorrem para a negação dos Direitos das Crianças.
Onde ficam os direitos com a crise?
Os 54 artigos da Convenção dos Direitos da Criança assentam em quatro pilares fundamentais: a não discriminação, o superior interesse da criança, a opinião da criança e a sobrevivência e desenvolvimento, que visa a garantia de acesso a serviços básicos e à igualdade de oportunidades. Em 2014, o Comité dos Direitos das Crianças divulgou conclusões relativas ao cumprimento da Convenção em Portugal e noutros países e mostrou-se preocupada sobretudo no que diz respeito a este último tópico. A austeridade e os seus impactos, defende o relatório, estão a gerar desigualdade e falta de oportunidades.
Meses mais tarde, o Comité Português para a UNICEF trouxe à luz o seu primeiro relatório sobre as crianças portuguesas, que se debruçou sobre a realidade das crianças num contexto de crise económica e financeira. O documento, “As Crianças e a Crise em Portugal – Vozes de Crianças, Políticas Públicas e Indicadores Sociais”, chamou a atenção para problemas como o aumento do desemprego ou a perda de abono de família e apresentou um número preocupante: em 2012, cerca de uma em cada quatro crianças vivia em agregados familiares com algum nível de privação material, por exemplo, dificuldade em pagar a renda ou empréstimo, as contas no fim do mês ou fazer frente a despesas inesperadas.
Disparidades e desigualdades
A Diretora Executiva do Comité Português para a UNICEF, Madalena Marçal Grilo, aponta essa como uma das principais preocupações da instituição. “Apesar de algumas mudanças positivas das últimas décadas, o agravamento da situação económica e financeira e as medidas de austeridade adotadas nos últimos anos vieram agravar problemas existentes. (…) Pensamos especialmente nas crianças afetadas pela pobreza, pelas desigualdades e pela falta de oportunidades.”
A responsável refere que o recente relatório do Gabinete de Investigação Innocenti da UNICEF, “Equidade para as Crianças”, “mostra como as disparidades entre as crianças mais desfavorecidas e os seus pares aumentaram na maioria dos países da OCDE e da UE e em particular nos países do Sul da Europa entre os quais Portugal.”
O direito à equidade pode parecer vago em teoria, mas as consequências práticas desta ausência têm efeitos muito práticos e muito graves: “As crianças que crescem em situação de pobreza ou exclusão social têm menor probabilidade de ter sucesso escolar, de gozar de boa saúde e de desenvolver plenamente as suas potencialidades.”
Tudo isto acerta em cheio também nas crianças e nas suas condições de vida. Pedro Pedrosa, coordenador do co-grupo sobre os direitos das crianças da Amnistia Internacional – Portugal (AI), deixa a esse propósito uma imagem que, entre outras, revela bem as consequências que esta desigualdade assume nos países ricos. “Se passarmos ao fim da tarde num bairro social, sabemos que está cheio de gente em casa e poucas são as luzes que vemos acesas. Muitas são as pessoas que não têm dinheiro para pagar a luz e as crianças não têm um frigorífico em casa, não têm como estudar ou fazer os trabalhos de casa quando chegam. Não é tolerável para ninguém, mas para as crianças é ainda menos.”
Um problema de mentalidade
Também a mentalidade e a cultura podem cumprir o seu papel na violação de alguns direitos fundamentais da criança. Portugal continua a ser um país no qual a maioria das pessoas não acha normal dar uma bofetada noutro adulto, mas continua a achar natural e, porventura, educativo, dá-la numa criança. A admissibilidade ou não de castigos corporais não é uma questão consensual, divide os pais e professores, mas também os magistrados, juristas, psicólogos e pediatras. Há quem defenda o poder corretivo de uma palmada dada na altura certa, há quem a entenda sempre como uma agressão e uma violência que não deve ser admitida.
Pedro Pedrosa, refere que a Amnistia Internacional é contra embora admita que no nosso país é uma prática culturalmente tolerável: “Costuma dizer-se que bater num adulto é violência, bater num animal é crueldade e bater numa criança é ‘educação’”, ironiza. “Em Portugal é proibido bater a uma criança seja de que forma for, mas este é um caso no qual a lei está à frente da mentalidade das pessoas. E esta mentalidade vai certamente demorar algum tempo até mudar.”
Palmadas e artistas
E porque, por vezes, o diabo está (também) nos pormenores – e, ainda na linha daquilo que são os costumes e tradições enraizados – o coordenador do Grupo de Direitos das Crianças da AI refere questões menos faladas do que a palmada, mas que não deixam de ter a sua importância, nomeadamente, o estatuto do artista tauromáquico. Na verdade, em 2014, o Comité do Direito das Crianças da ONU fez recomendações restritivas à participação das crianças em espectáculos tauromáquicos, tanto como artistas, como amadores e na qualidade de espectadores.
“Passado cerca de um ano a Assembleia da República aprovou o Estatuto do Artista Tauromáquico, que ignora completamente estas recomendações. Jovens com mais de 16 anos podem participar como artistas tauromáquicos, jovens com idades inferiores a 16 podem participar como artistas amadores, como é o caso dos forcados. E apesar de neste momento, por lei, a idade mínima para poder assistir serem os 12 anos, encontramos nas praças crianças de colo.” Uma situação que Pedro Pedrosa aponta como uma dupla violação dos direitos das crianças: “Uma parlamentar que aprova leis ilegais, já que a Convenção dos Direitos da Criança tem estatuto constitucional, outra com a não aplicação da lei em vigor.”
Isso mostra a necessidade do envolvimento de todos para que os direitos das crianças possam ser observados: governo, instituições, comunidade, cada um de nós. E um exemplo – que se pode considerar de sucesso – e envolvendo todos os atores sociais, é o trabalho infantil ilegal.
Em mês do Dia da Criança e do Dia Mundial Contra o Trabalho Infantil, celebrado a 12 de junho, é possível perceber que um fenómeno que ainda tinha alguma expressão no final dos anos 90, passou a ser residual volvidos cerca de 16 anos. De acordo com os dados cedidos pela Autoridade para as Condições do Trabalho (ACT), se em 1999 foram encontrados nos locais de trabalho 233 menores em situação ilícita, os números de 2014 e 2015 apontam para zero e quatro casos identificados, respetivamente.
Um problema de mentalidade
“Para serem respeitados, é importante que os direitos das crianças sejam conhecidos pelos adultos e pelas próprias crianças”, resume Madalena Marçal Grilo. A Diretora Executiva do Comité Português para a UNICEF chama ainda a atenção para uma situação que importa referir: os direitos, naturalmente, não são uma estrada só com um sentido e não impedem o exercício da autoridade por parte dos pais ou de outras pessoas que cuidam da criança. A responsável refere que a própria Convenção sublinha a importância da família e refere mesmo que um dos objetivos da educação consiste em “inculcar na criança o respeito pelos pais”. “As crianças têm direitos, mas também têm responsabilidades ou obrigações. Têm, por isso, de respeitar os direitos e as responsabilidades dos adultos e das demais crianças com quem convivem.”
A Convenção sobre os Direitos da Criança veio alterar o modo como as crianças são encaradas, reconhecendo-as como seres humanos com um conjunto específico de direitos e não como adultos em miniatura, como até então eram vistas. Só falta interiorizarmos todos essa noção.
Nos hospitais
Nas banais vacinas no centro de saúde, passando pelos procedimentos mais complexos e invasivos até à hospitalização, a criança tem direitos que os profissionais de saúde e pais devem ter presentes. A carta da criança hospitalizada, por exemplo, define um conjunto de direitos específicos das crianças que devem ser observados durante a sua estadia no hospital. Passam pelo internamento só caso os cuidados necessários não possam ser prestados em casa, em consulta externa ou em hospital de dia; o direito a ter os pais ou seus substitutos, junto dela, qualquer que seja a sua idade ou o seu estado; o direito a receber uma informação adaptada à sua idade; o direito a ver as agressões físicas ou emocionais e a dor serem reduzidas ao mínimo e ainda o direito a não serem admitidas em serviços de adultos, ficando reunidas por grupos etários, beneficiando de recreios e atividades educativas adaptadas à idade.
Proteger para evitar o pior
Das crianças alegadamente afogadas pela mãe em Caxias à criança de nacionalidade chinesa que caiu de um 21º andar, os últimos meses foram pródigos em situações que pareceram revestir-se de negligência, – seja das instituições, seja dos pais – e que culminaram em desfechos trágicos. Em que medida podemos melhorar os mecanismos de fiscalização, para detetar atempadamente as crianças em risco? Para Ana Perdigão, do Instituto de Apoio à Criança (IAC), uma coisa é certa: “A perda da vida de crianças leva-nos a questionar a nossa intervenção, sobretudo quando trabalhamos no sistema da proteção. Esta é uma área complexa, na qual as alterações legais não respondem só por si só à efetiva proteção da criança.”
Para a responsável do IAC, a solução passa por “atribuir às entidades com especiais competências em matéria de infância e juventude, meios e recursos humanos de forma a permitir-lhes responder de forma eficaz e atempada”, bem como “dinamizar a rede social”, por forma a fazer um “acompanhamento próximo e continuado às famílias, no sentido de tanto quanto possível, conhecer o seu modelo educativo, a existência ou não das competências parentais, saber reconhecer os sinais de negligência, a necessidade de apoiar ou não a saúde mental de alguns dos seus membros.”
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